Artigos › 13/11/2017

Quilombolas – Tradição, fé, luta e resistência

Neste mês de novembro, diversas cidades e estados de nosso país celebram, no dia 20, o Dia da Consciência Negra. A data faz memória ao falecimento de Zumbi dos Palmares, o último líder do Quilombo dos Palmares (maior quilombo do Brasil Colônia), no ano de 1695.

Entre os séculos XVII e XVIII, o Brasil vivia o auge do período da escravidão, pois europeus colonizadores, que habitavam nosso país, faziam uso da mão de obra de negros, que, trazidos de suas colônias na África para as nossas terras, eram transformados em escravos. Eles eram vistos como mercadorias, ou mesmo como animais; eram avaliados fisicamente: os escravos com dentes bons, canelas finas, quadris estreitos e calcanhares altos tinham preço mais elevado; era uma avaliação eminentemente racista. Vieram da África para o Brasil nos porões dos navios negreiros. Amontoados, em condições desumanas. No começo, muitos morriam antes de chegar ao Brasil, e os corpos eram lançados ao mar.

Os negros que conseguiam fugir se refugiavam com outros em igual situação em locais bem escondidos e fortificados no meio das matas. Esses locais eram conhecidos como quilombos. Nessas comunidades, eles viviam de acordo com sua cultura africana, plantando e produzindo. Na época colonial, o Brasil chegou a ter centenas dessas comunidades espalhadas, principalmente, pelos atuais Estados da Bahia, Pernambuco, Goiás, Mato Grosso, Minas Gerais e Alagoas. Eram entendidos pelo Conselho Ultramarino do governo português, em 1740, como todo “agrupamento de negros fugidos, que passasse de cinco, ainda que não tivessem ranchos levantados em parte despovoada, nem se achassem pilões neles”. A definição da Associação Brasileira de Antropologia de 1989 para esse agrupamento é: “Toda comunidade negra rural que agrupe descendentes de escravos, vivendo de cultura de subsistência e onde as manifestações culturais têm forte vínculo com o passado”.

As comunidades quilombolas são grupos étnicos – predominantemente constituídos pela população negra rural ou urbana –, que se autodefinem a partir das relações com a terra, do parentesco, do território, da ancestralidade, das tradições e das práticas culturais próprias. Estima-se que, em todo o país, existam mais de três mil comunidades quilombolas.
Passados mais de trezentos anos da morte de Zumbi dos Palmares, notamos que nosso país tem uma enorme dívida histórica com o povo quilombola, que, mesmo após 129 anos da assinatura da Lei Áurea, ainda sofre preconceito e luta resistentemente em busca de reconhecimento do espaço a que tem direito.

Vamos conhecer, nesta reportagem, três cidades brasileiras com comunidades quilombolas: Bom Jesus da Lapa (Bahia), Eldorado (Vale do Ribeira-SP) e São Bento do Sapucaí (Vale do Paraíba-SP), saber como vivem, nos dias atuais, os descendentes de escravos e como as áreas estão sendo utilizadas.

Eldorado (Vale do Ribeira-SP)

Nesta localidade, há duas grandes comunidades quilombolas: André Lopes e Ivaporunduva. Em ambas, a receptividade e a cordialidade se misturam com a maneira simples e muito feliz de se viver dos quilombolas, brasileiros ainda tão pouco conhecidos ou mesmo lembrados.

Cerca de 50km da cidade de Eldorado, no sul do Estado de São Paulo, o Quilombo André Lopes se organiza e sobrevive do turismo ecológico, do plantio de subsistência e também, pode-se dizer, do canto dos pássaros e do barulho das águas.

É à base de café coado no caldo de cana, cuscuz de arroz, bolos e muita simpatia que se inicia uma longa conversa entre jornalistas e um povo que honra a própria cultura, luta pela preservação da natureza de que faz parte, incentiva a vida comunitária e tem coragem e garra para alcançar a justiça.

O local é banhado pelo rio Ribeira do Iguape e, segundo dados do Instituto de Terras do Estado de São Paulo – (ITESP), existem 14 comunidades quilombolas, porém a maioria ainda não tem a titulação da terra onde nasceu; nem seus moradores, nem seus antepassados, que foram abandonados naquela região após receberem alforria ou terem fugido de seus donos.

A luta deles é exatamente esta: a titulação da terra a que têm direito. “Não existe quilombo sem-terra”, diz João Soares da Mota, agricultor e membro da comunidade. “Queremos que as autoridades entendam que o negro precisa ser verdadeiramente livre; e liberdade para nós é viver em nossa terra.”
João também explica que a intenção não é possuir a terra para comercializá-la, mas, sim, para sobreviver e preservar. “Os governantes fecham os olhos para a gente, porque existem interesses políticos.”

Seguindo de carro, cerca de vinte minutos depois da comunidade de André Lopes, localiza-se o Quilombo
Ivaporunduva. O líder comunitário Benedito Alves da Silva, “Seu Ditão”, não deixa nenhum detalhe escapar, ao mostrar que a vida em meio à natureza é melhor do que a vida nas “misérias” de uma grande metrópole.

Ele vive do plantio de banana orgânica e participa de ações educacionais organizadas pela Associação Quilombo de Ivaporunduva, que conduz estudantes, crianças e adolescentes por diferentes escolas do país à comunidade, para conhecer mais sobre a cultura dos quilombos. Ele apresenta o quilombo com uma aula de história para os estudantes, realizando oficinas que reproduzem como era o dia a dia dos negros escravos que viveram naquela região, além de contextualizar as histórias de lutas pela terra e todas as conquistas da localidade até o momento. “O título da terra para nós é significado de liberdade”, reforça Seu Ditão.

Ele destaca que toda a comunidade se empenha para que as futuras gerações não precisem sair e consigam sobreviver no lugar que foi conquistado após muitos anos de luta.

E a organização da comunidade é fundamental nesse processo, pois garante aos integrantes renda extra com a confecção e venda de artesanato para os turistas que chegam.

A Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras do Vale do Ribeira (EEACONE) tem dado o apoio necessário aos povos quilombolas dessa região do país.

Tanto em Ivaporunduva quanto em André Lopes, a entidade, que não possui fins lucrativos, trabalha para que o artigo 68 das Disposições Transitórias da Constituição Federal seja garantido e cumpra requisitos que dizem respeito ao direito à terra dos remanescentes de Quilombo.

Na prática, o trabalho da EEACONE é identificar lideranças, incentivar a importância do processo de construção de associações, capacitar, formar e estimular o resgate histórico e cultural de cada comunidade, além de assessorar juridicamente as comunidades tradicionais.

 

 

IR. SUELI ADVOGA PARA OS QUILOMBOLAS

Membro da EEACONE, Ir. Maria Sueli Berlanga, que pertence à Congregação das Irmãs Pastorinhas, advoga e dá assessoria jurídica àqueles que mais necessitam. A instrução necessária é muito importante no caminho da conquista pelos direitos fundamentais das comunidades tradicionais da Região do Vale do Ribeira. Ela conta que cada comunidade que vai se organizando passa a ser uma entidade jurídica independente. A assessoria jurídica é importante, pois se trata de titulações de terras coletivas.

“Estamos em uma área de preservação ambiental que não considera questões culturais, nem sociais, e infringe direitos, pois essas comunidades já estavam aqui quando os parques ambientais foram criados. Aqueles que sempre preservaram a natureza, hoje, estão sendo multados e tratados como criminosos ambientais, por fazerem o plantio de pequenas roças para sobreviverem em áreas que já pertenciam a eles”.

Segundo Ir. Sueli há uma dissociação das leis em comparação com a realidade. “São órgãos de difícil diálogo, que dificultam a vivência da comunidade. A Polícia Ambiental é um braço do Estado, que vem quando recebe notificações de denúncias que chegam à Fundação Florestal. Ela aparece com um discurso muito forte de opressão. Entretanto, o Estado privatizou 25 unidades, e o primeiro artigo das leis de privatização dos parques dá conta de que as empresas poderão, inclusive, fazer exploração de madeira, enquanto eu já defendi casos em que uma pessoa foi processada porque desmatou 24 metros quadrados para construir um barraco para viver.”

 

BOM JESUS DA LAPA (BA)

Em Bom Jesus da Lapa (BA), entre os anos 1970 até o ano 2000, a comunidade Rio das Rãs, distante cerca de 80km do centro, sofreu com a violência de fazendeiros e grileiros. A terra foi tomada na marra ou na perseguição dos moradores. Casas foram derrubadas; animais, abatidos; plantações, embebidas em veneno.

No ano 2000, graças ao empenho da comunidade e à união com a Comissão Pastoral da Terra (CPT), o Ministério Público Federal e o Movimento Negro Unificado, a titulação da terra foi concedida.

Desde então, o movimento cultural e a recuperação da identidade negra não param de crescer e florescer, como um verdadeiro resgate cultural que chega até mesmo às escolas do município, com a prática do ensino baseada na preservação da identidade negra daquela região.

 

SÃO BENTO DO SAPUCAÍ (SP)

Na Serra da Mantiqueira, a 185km da cidade de São Paulo, em São Bento do Sapucaí, encontramos mais uma comunidade quilombola, cujo povo simples e trabalhador luta para manter vivas a tradição e a história de seus antepassados. Eles residem no bairro do Quilombo, vilarejo bucólico, afastado do centro da cidade, que respira arte, fé e cultura.

No período do Ciclo Cafeeiro no Brasil (século XVII), a cidade contava com intensa mão de obra escrava e era utilizada como rota para Minas Gerais.

O bairro conta com um complexo turístico, com destaque para o ateliê do renomado escultor Ditinho Joana e para a associação “Arte no Quilombo”. Por meio dessas iniciativas, o lugar é um reduto de artesãos, onde somente no Arte do Quilombo há mais de oitenta colaboradores, que, por meio do artesanato feito com a palha da bananeira, milho, bambu e revestimentos, desenvolvem inúmeros produtos, movimentam a economia local e auxiliam na renda familiar de seu povo. O uso da palha da bananeira é uma forte referência à época dos escravos, pois era muito usada nos quilombos.

Como local para o artesanato de raiz e de preservação da cultura quilombola remanescente, o espaço Arte no Quilombo existe formalmente desde 2004, mas há mais de trinta anos que os moradores locais estão envolvidos no processo de criação de peças artesanais.

Nem só de artesanato vive o Bairro do Quilombo.

O povoado respira fé e a tradição de seus antepassados. Luzia Maria da Cruz, 86 anos, mais conhecida como “Dona Luzia”, é a matriarca do bairro e a grande guardiã e mantenedora da cultura quilombola. Ela realiza, junto a sua família, há mais de cinquenta anos, a tradicional “Festa do Quilombo”, popularmente conhecida como “Festa do 13 de Maio”, em que a comunidade celebra o dia 13 de maio de 1888, quando a Princesa Isabel assinou a Lei Áurea, abolindo a escravatura. A festa é marcada por muita dança e música, com apresentação de grupos de Congada, Moçambique e Maracatu. É servido um grande almoço comunitário e a tradicional distribuição de doces caseiros.

O bairro possui seu próprio grupo de Congada, o São Benedito, criado por Dona Luzia. O grupo traz, em suas letras, harmonias e melodias, e no visual colorido de suas roupas – formadas por chitas, rendas, malhas, estopas, turbantes, faixas, chapéus e flores –, as tradicionais histórias de um povo batalhador e determinado. Foi Dona Luzia quem trouxe a congada para o bairro, aprendida com os avós escravos. A apresentação da Congada acontece nas festas do município, feiras e exposições que ressaltam as manifestações culturais de todo o Estado de São Paulo. “Nós amamos o bairro e a cultura quilombola de nossos antepassados; lutamos para que a história, a cultura e as tradições permaneçam e sejam passadas de geração a geração. Ensinei a congada a meus filhos e, hoje, passo a meus netos. É muito gratificante”, conta Dona Luzia.

A fé também não é deixada de lado. Durante a programação da festa é realizada a Santa Missa, na Igreja Nossa Senhora da Conceição Aparecida, construída com recursos próprios da comunidade, em 1905. “Essa festa se tornou uma tradição aqui e é muito bonita; nós preparamos tudo com muita alegria. Recebemos outras congadas, moradores de São Bento, cidades vizinhas e diversos turistas que lotam o bairro, e fazemos um almoço para todo mundo que vem comemorar aqui com a gente. Além dessa festa (13 de maio), fazemos outra também no Dia da Consciência Negra (20 de novembro)”, revela Dona Luzia.

RELIGIOSIDADE

Os povos quilombolas de todo o país praticam, principalmente, três diferentes espiritualidades: a Católica, a Evangélica e o Candomblé. Algumas comunidades possuem apenas uma religião, porém o mais comum é que, em uma mesma comunidade, tenham igrejas católicas e evangélicas.

Segundo Ir. Sueli, infelizmente, algumas igrejas evangélicas praticam proibições da dança, das roupas ou de costumes que são essencialmente aspectos da identidade quilombola; entretanto, a Igreja Católica tenta, ainda que com pouco êxito, um diálogo com algumas igrejas evangélicas, para que a cultura seja preservada independentemente da religião.

Para uma comunidade se tornar quilombola é necessário travar uma paciente luta que envolve uma pesquisa etnográfica e uma burocracia que pode se arrastar por décadas.

1. A comunidade tem de se autorreconhecer como negra, organizar-se e encaminhar a documentação para a Fundação Palmares, que é vinculada ao Ministério da Cultura.
2. A fundação manda um funcionário até a comunidade para checar as informações. Assim sai o primeiro certificado.
3. Com a certificação em mãos, a comunidade pode pedir ao Instituto Nacional de colonização e Reforma Agrária (INCRA) a titularidade das terras.
4. O INCRA inicia os estudos etnográficos e as pesquisas. Pessoas de fora da comunidade são consultadas com o intuito de saber sobre irregularidades ou conflitos que envolvam a comunidade em questão.
5. É publicado um relatório no Diário Oficial da União. Abre-se, então, a participação de outros órgãos, como, por exemplo, o Ibama. Todas as partes têm noventa dias para contestar qualquer ítem do relatório.
6. Ao fim das fases de recursos, o Incra começa a delimitar os limites do território e desapropriar áreas particulares. A comunidade pode receber títulos parciais se houver mais de um imóvel a ser desapropriado.
7. Se o território estiver localizado em área pública, município, Estado ou Governo Federal são os responsáveis por dar a titulação. Ao surgir conflitos de interesse, tenta-se a conciliação na justiça.

Fonte: Fundação Palmares, Incra, UOL

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