Notícias, Notícias gerais › 06/12/2018

Naturalização da violência

Quando penso em uma criança, gosto sempre de pensá-la como uma caixinha aberta, a qual aceita que qualquer coisa seja nela depositada, tal qual uma folha em branco. Com o passar dos anos, a caixinha vai se fechando, de modo a limitar o que nela é possível depositar. Isso porque, quando crescemos, nossos filtros vão crescendo conosco e se desenvolvendo, enrijecendo-se, para o bem ou para o mal. Na Justiça protetiva dos interesses das crianças e adolescentes, essa realidade, infelizmente, materializa-se diuturna e incessantemente.  Mas, antes de tudo, é importante conhecer um pouco de como atua essa Justiça protetiva dos interesses dos menores de idade.

Em artigo anterior, escrevi sobre a evolução legal da proteção das crianças e adolescentes no sistema legal brasileiro, dando uma passeada nos primórdios, pensados globalmente, os quais serviram de inspiração da legislação que dali partiu. Existem duas vertentes de atuação da Justiça no que se refere às crianças e adolescentes no sistema legal brasileiro: uma de proteção e outra de repressão (com intuito de recuperação). Nesta conversa, me limitarei a falar sobre a protetiva.

A Justiça protetiva (cível) da criança tem por função essencial proteger uma criança ou adolescente que esteja sendo exposto a uma situação de risco. Essa proteção se dará pelo acompanhamento prévio e prolongado de instituições de ordem administrativa (CREAS, Conselhos Tutelares, escolar, etc.), que visam avaliar se os cuidados prestados pelos pais e demais familiares está sendo suficiente para a promoção de um desenvolvimento biopsicossocial sadio para a criança/adolescente, no caso, o protegido. Remendo-me à metáfora da caixinha, primeiro se avalia se o que está sendo colocado deveria ou poderia estar lá. Verificada a regularidade, nada precisa ser feito pelo sistema jurídico. No entanto, se a caixinha está sendo preenchida de forma inadequada, desproporcional ou até mesmo violenta, o Judiciário é chamado para intervir, na tentativa de res-significar o que foi indevidamente posto lá dentro e passar a colocar coisas que devam lá permanecer, pois são edificadoras. Essa, muito resumidamente, é a atuação cível da defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes.

Considerando este contexto, há um elemento que, tenho observado, repete-se na grande maioria dos casos que chegam aos corredores dos Fóruns: a naturalização da violência. Entenda-se naturalização da violência como a violência sendo a regra, o exemplo mais próximo, por vezes até o único. A caixinha aberta, ao ir se fechando, preenche-se de agressões que se naturalizam. A violência não se só repete, mas até mesmo a proteção assusta. Em outras palavras, só se pode desejar ir para o Japão, se souber que ele existe no mundo; e só se pode reconhecê-lo se soubermos como ele funciona. Sendo assim, é tristemente visível que, mais do que pedir socorro, as crianças e adolescentes não sabem o que fazer quando o encontram, pois não o reconhecem. Explico-me.

Quando uma criança é tirada do seio familiar e sujeita ao acolhimento institucional por estar sofrendo violência física (maus tratos) e/ou psicológica (negligência, exposição ao uso de álcool e drogas, prostituição, etc.), é comum que essa criança rejeite a intervenção. Não é raro uma criança ou adolescente nessa situação, quando questionada se deseja permanecer no acolhimento, afirmar que não deseja, que prefere voltar para casa, pois está com saudade, ainda que o sistema administrativo e judiciário tenha tido aquela intervenção como último recurso. Também não é incomum essas crianças evadirem-se das unidades de acolhimento e buscarem, justamente, o ambiente do qual foram institucionalmente resgatados. Também não é raro a saudade da vítima (protegido) em relação aos agressores (ascendentes ou guardiães); o sentimento de raiva dos protegido quando os genitores não realizam visitas; a troca constante de famílias acolhedoras (nos municípios que possuem este programa[1]), por inadaptação; agressividade com os institucionalmente protetores (profissionais da rede de proteção e do sistema judiciário); ou qualquer outro comportamento resistente à proteção e de resgate à violência.

Mas o que tudo isso significa? Tenho notado que a sensação de não pertencimento, na proteção, sobrepõe-se à sensação de proteção propriamente dita. Tanta violência foi posta dentro da caixinha, enquanto ela ainda estava aberta, que quando foi se fechando, parece não haver muito mais espaço para uma realidade protetiva da qual desconhece. Por desconhecida, indesejada.

É sabido que tudo que é novo causa estranhamento. Não há ser humano que não tenha, em alguma medida, medo da mudança, ainda que a deseje profundamente. Mas ela parece ser mais facilmente desejável do que manipulável, quando materializada (ou materializável). Com a proteção das crianças e adolescentes, isso não é diferente. Não são capazes de desejar uma realidade que desconhecem e, por terem medo que a mudança seja pior do que a que eles já conhecem (que é bem ruim, quando chega à circunstância de necessitar de intervenção judicial), sentem-se mais seguros onde estão e, por isso, por vezes, desejam voltar.

Quando penso nessa realidade, uma triste imagem me vem à mente: a de um cãozinho abandonado. Quem já tentou resgatar um sabe que há uma resistência primeira. É instinto de sobrevivência dele resistir a qualquer um que se aproxime, independentemente da intenção. É claro que, para o cãozinho, o instinto é mais visível, pois único. Para a criança isso não é diferente. Como reagir ao cuidado, se sequer sabe o que é isso? Como confiar em algo que há pouco nem sabia que existia? Estando a caixinha já meio fechada, tornou-se natural a resistência à proteção, pois já naturalizada a violência. O que acontece (e assusta um pouco até) é que essa naturalização, além de perdurar, repete-se. Tristemente, a resistência torna-se regra, pois a violência já foi automatizada. O instinto, neste caso, difere daquele do cãozinho, porque não é nato, mas naturalizado.

À Justiça cabe reabrir, com cautela, a caixinha, e colocar lá dentro o que não foi posto por quem tinha o dever moral, muito além do legal, de fazer. Por vezes ela consegue, por vezes não, mas as tentativas continuam. Quando consegue, a proteção se materializa e a violência se desnaturaliza, não se repetindo. É neste momento que a Justiça protetiva consubstanciou-se: aquela violência foi substituída pela aceitação e desejo de uma nova realidade que não mais agride, mas acolhe, acalenta.

Findam-se as linhas, proponho uma reflexão para pôr um ponto e vírgula no assunto, por ora: do que nossa caixinha está cheia e o que estamos pondo nas caixinhas alheias? O que nos é natural?

 

[1] Caso tenha curiosidade, no artigo no mês passado falei sobre o assunto.

Clariane Dallazen

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