Artigos › 15/07/2020

GILBERT LEGRAND

Olho de artista visual é uma coisa incrível. O sujeito vê um objeto e imediatamente enxerga nele coisas que outras pessoas não veem. Ou jamais imaginariam… Seria isso o famoso “tirar leite de pedra”? Em certo sentido sim!

Ao olhar um simples serrote você imaginaria ali um corpo de mulher, e na abertura para colocar as mãos, suporia ali a cabeça dela, meio deitada e apoiada pelos braços? Você enxergaria uma chave de boca ou chave fixa como os braços do temível King Kong equilibrando-se no Empire States? Cabides transformados em automóveis? Uma escova de roupa dando vida a um apache, cujo cocar são as cerdas do objeto? Um casal se beijando numa tesoura aberta? Uma pessoa correndo feita de uma velha torneira?

O autor de tão imaginativos e criativos personagens chama-se

Gilbert Legrand. Ele é um ilustrador, escultor, designer gráfico francês. Vive e trabalha em Toulouse e tem como lema a criatividade, o fazer muito com pouco, para   se surpreender com coisas novas e originais.

Seu trabalho tem uma pegada de humor. Os personagens criados a partir dos objetos e principalmente, de suas formas (e depois fotografados) têm um tratamento meio caricato, meio exagerado, seja na expressão, seja na simplificação do corpo, para adaptar-se ao formato.

O que nos coloca como crianças, diante de suas peças, com vontade de ver com as mãos, tocar,  brincar com aquelas coisas tão divertidas!

Há quem diga que seu exercício de transformar os objetos do cotidiano em esculturas de personagens é um exercício que nos faz lembrar as pinturas dos Surrealistas. Que bom! Surrealismo é sempre uma arte que ultrapassa as aparências, que se vê desobrigada da fidelidade ao real ou simplesmente o que vai além do real. É Legrand na veia e um pouco além.

Mais que simplesmente transformar os objetos em personagens, Legrand já os traz a público em situações pra lá de engraçadas, porque já os vê assim, desde o início da criação das peças (ou da transformação). E junto com a escultura há sempre uma história divertida, com uma boa dose de imaginação e ação.

O que acontece nesse simples ato de criação é que os objetos cotidianos ganham alma. Há ainda quem diga que ele, ao criar seus personagens, faz nada menos que libertá-los de uma vida subterrânea, fazendo-os ter rosto e corpo. Não é isso que acontece? Um objeto com corpo e rosto ganha outra identidade, pode ganhar nome, fazer parte das brincadeiras, ganhar narrativas das mais variadas e loucas!

O que vale aqui é também provocar admiração e sorrisos!

O artista sempre diz que é um frequentador assíduo dos supermercados, na procura do objeto mais poético para as suas realizações… É incrível como o modo de olhar as coisas provoca todo esse processo! Nós, vemos arte, brincadeira, riso, ele vê vida, poesia, libertação. Ele costuma dizer que o conceito de suas pequenas esculturas parte de um mistério: as personalidades secretas dos objetos foram reprimidas, para que eles pudessem cumprir sua função no mundo. E o que ele faz, seria apenas libertar essas personalidades, para que cada objeto seja ele mesmo e não um utilitário que todos acham que ele sempre foi (como o borrifador que na verdade é um rato dentucíssimo!).

Uma característica que ressalta das esculturas e também da junção delas com desenhos e pinturas, transformando tudo em ilustração, é o deliberado propósito de fugir do óbvio.

No Brasil há um livro (publicado em 2014) muito bem editado, feito pela editora Autêntica, de Belo Horizonte, só de ilustrações, em que Legrand mistura os desenhos com seus objetos. O título dá bem a dimensão da brincadeira: “As pequenas coisas em Nova York”. Os objetos (as esculturas) estão inseridos em desenhos da cidade, em situações que traduzem ação, movimento, energia, correria, ato de valentia etc. Eles estão pelas ruas de Nova York e dominam a paisagem. As ilustrações misturam então desenhos a lápis, com os objetos e vez por outra, complementadas com placas ou palavras elucidativas. A simplicidade das linhas dos desenhos contrastam com as cores e as texturas dos materiais, dos objetos, das formas, e isso já é o bastante. É possível inventar também uma infinidade de histórias.

O surpreendente é essa facilidade de pegar qualquer matéria-prima e transformar em obra de arte.

Por isso, quero propor para as crianças que também escolham um objeto, transformem-no em personagem e complementem com um cenário desenhado em uma página branca (ou qualquer tipo de papel), com o objeto inserido aí e depois fotografem… para entenderem na prática o que Legrand costuma fazer com suas pequenas esculturas. Ah, mas tente olhar para o objeto escolhido e deixar a sua imaginação trabalhar, para dar corpo e rosto para o seu personagem, que pode ser gente ou bicho!

Vamos ao show das pequenas coisas? É assim que ele chamou um de seus livros. Agora é com vocês!

 

O autor, Celso Sisto, é colaborador desta revista e doutor em Teoria da Literatura e escritor de literatura infantil e juvenil. Texto publicada da edição de julho de 2020.

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