Da figura à materialização da autoridade
Por Clariane Leila Dallazen
Jurídica, ética e filosoficamente, muito se discute sobre a imparcialidade dos operadores do Direito, especialmente a figura do Magistrado. O Juiz deve ser imparcial, ao contrário do Promotor e do Advogado, que podem tomar partido. Não quero questionar importâncias. Cada um deles é um operador necessário na ação. Apenas me proponho a refletir sobre a posição do Magistrado numa ação judicial. Parece importante pensar se esta suposta imparcialidade pode realmente existir. Um Juiz é realmente investido de um poder “pessoal”, ou apenas exerce uma função pública “impessoal”, com todas as limitações inerentes ao ser humano? Estive pensando sobre isso depois de uma grata surpresa vivida em uma das tantas audiências que também me sinto privilegiada em participar.
A situação foi a seguite: uma criança, em processo de medida de proteção e, consequentemente, destituição do poder familiar, ao iniciar a audiência, disse que estava com saudade do Magistrado, porque ele era muito lindo. Pode parecer bobeira, mas para mim foi substancialmente emocionante. Explico minhas razões. O ambiente do Fórum é bastante imponente. A figura do Magistrado é quase super-humana. Via de regra, dá medo. Supreendentemente, não para aquela criança. Aquelas doces e inocentes palavras significaram que, aquele ambiente imponente, para ela, era mais protetivo que intimidador. Afinal, ela fora capaz de ver beleza e sentir saudade.
Gosto de pensar a saudade como Rubem Alves o faz: “A saudade é o bolso onde a alma guarda aquilo que ela provou e aprovou. Aprovadas foram as experiências que deram alegria. O que valeu a pena está destinado à eternidade. A saudade é o rosto da eternidade refletido no rio do tempo.” Não que a circunstância que tenha levado aquela criança posicionar-se em frente ao Magistrado tenha sido alegre, mas ao menos foi capaz de gerar uma saudade, saudade esta daquela figura que mais representava proteção do que autoridade. A saudade poderia pousar na figura do Promotor ou do Advogado. Mas estamos a falar da autoridade do Magistrado. Não terei linhas para discutir o contraponto entre autoridade e autoritarismo, mas pensemos a autoridade como uma superiodade altiva e inevitável (figura do Juiz).
Mas o que isso tem a ver com a imparcialidade? Afinal, foi assim que nossa conversa começou.
A imparcialidade de um Magistrado é um pré-requisito para a consubstanciação (realização) da Justiça na vida das pessoas. Não há dúvidas disso. Tanto é assim que ela é amplamente discutida. No entanto, sinto que, por vezes, imparcialidade é confundida com despersonalização. Tecnicamente, parece que a Justiça só poderia ser justa se o Juiz fosse somente Juiz, não pessoa. Mas aquela criança não estava com saudade da figura investida do poder de consubstanciar a Justiça por meio da operacionalização do Direito. Ela estava com saudade daquele ser humano que foi capaz de, lindamente, exercer sua função protetiva, por meio a instrumentalização dos recursos jurídicos disponíveis.
Onde, então, está mesmo, a Justiça? Na letra da Lei ou na capacidade humana de oporacionalizá-la? Essa é uma pergunta de gosto de me fazer. Acho até que sei a resposta, ainda que tenha um pouco de medo de perceber isso.
Espontaneamente, é mais fácil pensar a Justiça e seus operadores apenas com uma responsabilidade técnica e toda técnica, com um certo grau de dedicação e estudo, é materializável. Mas Justiça não se resume à letra da Lei, ainda que a sociedade insista nisso. Algumas pessoas gostam de confundir Lei com Justiça, mas fazer Justiça é muito mais do que ser habilidoso o suficiente para instrumentalizar a Lei. Isso pode até ser perverso. Fazer Justiça é ser capaz de gerar segurança. Provocar saudade, por vezes.
Segurança jurídica é mais do que saber que, repetidas vezes, a Lei vai gerar o mesmo resultado. Segurança jurídica é ser capaz de, por meio da operacionalização da lei, aliada à condição de ser humano, ser capaz de gerar conforto.
Costumo brincar que meu trabalho é meio denso, espesso, tenso. Isso porque ninguém procura o Fórum com uma boa notícia. Sempre é com um problema a ser solucionado. De certa maneira isso credibiliza, pois quando transfiro a solução de um problema meu a outrem é porque acredito que a “pessoa” para quem estou transferindo essa responsabilidade é mais apta do que eu. Eis onde reside a maestria da Justiça.
Quando aquela criança usou as palavras “saudade” e “lindo”, naquele mesmo ambiente que parece ser muito mais intimidador que reconfortante, percebi que a Justiça efetiva é muito mais humana que legal. Para ser justo é preciso ser humano. Saber usar o poder, humanamente, parece ser mais efetivo do que simplesmente estar (in)vestido dele (togado).
Para ser justo, não precisa ser Juiz, precisa ser humano. O erro e o acerto, na Justiça parecem morar juntos. O que a torna real também pode torná-la falha. Parece adiantar pouco ser Juiz quando não se permite ser também humano. É como usar a força apenas para fazer violência. A responsabilidade humana de um Magistrado supera a sua responsabilidade legal, ainda que esta seja estremamante importante eestejam intimamente relacionadas. Sejamos legalmente humanos na operacionalização da lei e humanamente legais ao sermos o que somos e o que podemos ser.