Deus é um Fogo Abrasador
O Deus de Jesus não habita as alturas. Habita o coração humano e o tecido do Universo. Seu dom maior é a vida.
Converter-se à vida é aceitar Deus e converter-se a Deus é abraçar a vida como dom maior.
Porém, o Deus do qual falavam os fariseus não era o mesmo Deus anunciado por Jesus.
Nossa maneira de entender Deus influi em nossa maneira de entender a vida. Projetamos em nosso proceder a imagem que temos de Deus.
Tantos pastores que prometem curas e, no entanto, ninguém sugere que estão subvertendo a ordem estabelecida! Jesus, ao curar doentes, provocou a ira dos líderes políticos e religiosos de seu tempo. Por quê? Ora, ao mostrar que Deus não quer a doença, mas a saúde, e que, portanto, a enfermidade não é um castigo divino, Jesus incutiu nos enfermos uma explosiva interrogação: se não é castigo de Deus, então qual é a causa?
Descobrir que vem da Terra o que antes se atribuía ao Céu é o primeiro passo rumo à consciência crítica.
O encontro de Jesus consigo e com os outros resgata a humanidade. A divindade se manifesta em Jesus sem negar a humanidade, mas acentuando-a.
Ainda hoje os pesquisadores querem saber para quem Marylin Monroe tentava ligar quando a morte a surpreendeu. Debruçada na cama, ela foi encontrada com o telefone à mão.
Ernesto Cardenal sugeriu que ela havia pedido uma ligação para o Amor. E foi imediatamente atendida.
Não era água que a samaritana buscava no poço de Jacó (João 4, 1-45). Era um sentido à sua existência. Só o sentido torna a vida propriamente humana. E Jesus lhe revela o sentido dentro da trama humana, naquilo que ela tem de beleza e de feiúra, de grandeza e de mesquinhez, de vitória e de fracasso.
Mil homens ou mil mulheres. Basta um único amor para apagar todas as lembranças e marcar com fogo.
O que no amor chamamos paixão, na experiência de oração chamamos mística. A experiência é a mesma: um outro nos habita por dentro e por pura gratuidade do amor de Deus.
Só ama de verdade quem é capaz de perdoar. Essa dimensão tão profunda e misteriosa do amor – o perdão – parece impossível numa sociedade como a nossa, na qual até relações afetivas são contabilizadas entre ganhos e perdas, cobranças e débitos. Perdoando, Jesus nos permite saber como é o coração de Deus.
Há palavras que, com o tempo, são estigmatizadas. Uma delas é pecado. Será que não há mais pecado? Nenhum de nós sente o peso de seu próprio pecado? A psicanálise constata que não nos livramos facilmente da consciência do próprio pecado. Existem atos que teologicamente não são pecados, mas dependendo da consciência da pessoa, do escrúpulo que carrega, então ela considera aquilo pecado.
Peco todas as vezes que, em meu proveito, reduzo as possibilidades de vida do outro. Seja sonegando-lhe o salário suficiente para aumentar meus lucros, difamando-o para defender minha imagem, ferindo-o em seus direitos ou traindo-o em sua confiança.
A rigor, há um único pecado: egoísmo.
Pecado é a sonegação da possibilidade do outro. Possibilidade de vida e de produção de sentido.
Não é o excesso de bens materiais que nos faz mais humanos. É a capacidade de preencher a nossa subjetividade, de impregná-la de um sentido que faça a vida valer a pena como acesso ao direito de felicidade. E, também, faça a morte valer a pena.
Quando falamos de redenção, falamos de liberdade. Mas, o que seria liberdade? O american way of life? É tanto maior a liberdade quanto mais amplas as possibilidades de consumo?
Há quem entenda a liberdade como um acordo recíproco de respeito mútuo ao espaço alheio. Cada um que se mova em seu espaço, cuidando-se para não invadir o espaço de outrem. Para o Evangelho, somos tanto mais livres quanto mais produzimos e reproduzimos liberdades. E quanto maior a nossa dificuldade de fazer isso, maior é também a nossa dificuldade de aceitar a liberdade alheia.
O amor nada mais é do que o desafio de construir a minha liberdade através da construção de liberdades alheias. É só isso que o amor exige. É só isso que o amor pede.
Artigo escrito por Frei Betto