Artigos › 07/07/2020

Pedra, papel e tesoura

 

Para brincar, nem sempre é preciso um brinquedo. Só é preciso energia. Por tê-la, a primeira brincadeira que veio à mente, considerando a escassez de recursos materiais, foi a brincadeira “pedra, papel ou tesoura.”

As pessoas que conhecemos em nosso dia a dia, se nos mantivermos atentos, sempre nos ensinam alguma coisa. As últimas que conheci me ensinaram e me fizeram refletir sobre um coração pedra, papel ou tesoura.

Tem gente de todo o jeito, feliz ou infelizmente. Gostemos disso ou não, o livre arbítrio é real, somos tudo o que escolhermos ser, amar isso não tira a responsabilidade pessoal da escolha.

Tem gente de coração-papel, frágil, dilacerável. Estes se deixam escrever e inscrever. Pessoas com coração papel deixam o outro escrever, no frágil papel em branco de seu coração, a história de amor que quiserem. Até que um dia, uma pessoa de coração-tesoura, que ali se impõe, vai lá e despedaça aquilo que lá estava escrito.

A figura da caneta, que escreveu naquele papel em branco, parece perder a importância. A tesoura consegue, supostamente, despedaçar o papel a ponto de a história escrita parecer não fazer mais sentido.

Pois é, as pessoas-tesoura têm essa habilidade. Quando não aguentam a imagem daquilo que está escrito na vida do outro, a despedaçam, normalmente delegando a responsabilidade à suposta solvência do papel. Para o papel é fácil atribuir essa responsabilidade, que rapidamente toma contorno de culpa, pois ele aceita toda e qualquer coisa, inclusive ser amassado e jogado fora.

No entanto, na brincadeira do dia, a tesoura, ainda que cruel, não é a mais forte. Tem a pedra, que é capaz de quebrar a tesoura, mas não de não se deixar envolver pelo papel. Esse coração-pedra parece, pela dureza, ser ainda mais cruel que a tesoura. Parece ter o poder de destruir só pelo gosto de destruir. Só para mostrar que é mais forte. Ainda que medir força não seja objetivo.

O coração-tesoura destrói porque não gosta daquilo que está materializado no papel, porque tem inveja, cegando-o, tem medo do desafio de deixar-se marcar e passar a gostar. Coração-tesoura, ou picota pelo prazer de picotar; ou o faz para, supostamente, proteger-se. O coração-pedra, mais do que parecer que pode machucar pela sua dureza, pode estar a proteger-se, na esperança de depurar-se. Rubem Alves escreveu um livro cujo título, por si só, já é um poema, uma espécie de haikai: “ostra feliz não faz pérola”.

O coração-pedra, ao ensimesmar-se, ainda que se sinta protegido, não vai para além de permanecer ensimesmado. Pode até proteger-se daquilo que poderia não ser um golpe (ainda que seja um risco); mas também poderia ser um aconchego: deixar-se envolver pelo (coração) papel que, ainda que mais frágil, pode o aquecer. Coração-papel, ensimesmado em sua suposta fraqueza transfigurada em fragilidade, quando não despedaçado pela tesoura, pode envolver a pedra e “vencer” o jogo.

Pois é, nem só de fragilidade é feito o papel. Mal sabe a pedra, que se se deixasse envolver pelo papel, se aqueceria, se acalentaria, de modo que juntas, envolvidas, nenhuma tesoura pudesse cortar.

Ser frágil não é o mesmo que ser fraco. O que é fraco se quebra e, por perder as forças, não se remenda.  O frágil, ainda que se quebre, resta-lhe o desejo de remendar-se e remenda-se, juntando e colando suas partes, para que elas fiquem mais firmes, mais fortes, mas sem perder a delicadeza que a fragilidade lhe permite ter.

Os japoneses, em sua sabedoria, conseguiram materializar esse conceito. O Kintsugi consiste em uma técnica japonesa de reparar vasos valiosos (histórica, sentimental ou materialmente) por meio da colagem das peças quebradas com ouro.

Quando se olha um vaso quebrado, além da tristeza de perder algo que possuíamos, fica a sensação de que aquela beleza não volta mais. Assim seria se não se tentássemos concerta-la. Se o objeto quebrado, ali, diante dos nossos olhos, naquele instante, pudesse, pela tristeza da perda, ocupar mais espaço do que ocupou aquele belíssimo vaso que esteve ali até então, intacto, por um longo tempo, sucumbiríamos àquela perda.

No entanto, se o desejo de reparo, baseado na ideia de beleza duradoura, nos toma, mais do que focarmos na triste e feia imagem do vaso quebrado, podemos fazer como fazem os japoneses: juntamos as peças e preenchemos os espaços vazios que ficaram e juntamos as migalhas com algo forte, brilhante e encantador: o ouro.

Assim, com o calor do ouro derretido, adaptável, colamos pedaço por pedaço, com sutil delicadeza e com muita paciência, deixando que o calor aqueça aquele pequeno reparo que, quando solidificado, deixa-se tomar pela fortaleza que a rigidez se fez, após fortalecer-se e preencher-se com aquela forma de restruturação.

Coração-pedra, papel, tesoura ou coração partido, o que importa é reconhecer-se e, a partir disso, formular ou reformular-se, capacitando-se para as consequências.

 

Texto escrito por: Clariane Leila Dallazen

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