O PERDÃO MUDA O PASSADO
“Se não podes amar, cessa ao menos de odiar”.
(Comte-Sponville)
O que significa, de fato, perdoar? Para conceituar o perdão, talvez seja oportuno esclarecer o que o perdão não é: perdão não é sinônimo de compaixão, embora possamos perdoar com mais facilidade aqueles por quem sentimos compaixão; o perdão não pode ser equiparado à clemência, pois esta consiste apenas na renúncia em punir; o perdão não se resume à concessão de desculpa, uma vez que desculpamos somente aqueles que nos fizeram algo sem intenção ou de maneira acidental; o perdão também não se identifica com a anistia. A anistia implica em não punição e esquecimento do que ocorreu, ou melhor, a anistia insinua que os acontecimentos não ocorreram. Em outras palavras, perdoar não significa esquecer o que ocorreu ou simplesmente apagar da memória. Perdoar tem mais a ver com um acerto de contas com o passado, mas sem esquecê-lo e jamais eliminá-lo.
O perdão expulsa o ódio
Para o filósofo francês André Comte-Sponville, “perdoar é cessar de odiar”, ou ainda, “perdoar é fazer o luto do seu ódio”. O ódio é, flagrantemente, uma tristeza. Quando cedemos ao ódio, cedemos à tristeza, ao ressentimento e à vingança. Ceder a tais sentimentos é pagar o mal com o mal. O perdão é o oposto da vingança. O perdão freia a busca interminável e infinita daquele que deseja vingança, a qual é alimentada pelo ódio. O perdão, entendido como um cessar de odiar, remete à ressignificação do fato ocorrido na busca da eliminação do ódio.
Assim, perdoar não é esquecer o que aconteceu, mas abrir mão de ter ódio ou raiva daqueles que nos ofenderam ou nos prejudicaram intencionalmente. O perdão não exige reatar vínculos e convivências com aqueles que nos ofenderam, nos insultaram ou nos agrediram. O perdão pede que o ódio seja eliminado, mas não necessariamente que as relações sejam reestabelecidas.
A filósofa judia Hannah Arendt observa que o perdão serve “para desfazer os atos do passado”. É possível mudar o passado? É claro que não podemos desfazer aquilo que foi feito, muito menos fazer com que o que aconteceu não tenha acontecido. Todavia, observa o filósofo francês Paul Ricoeur que “o sentido do que nos aconteceu, quer tenhamos sido nós a fazê-lo, quer
tenhamos sido nós a sofrê-lo, não está estabelecido de uma vez por todas”. Ao olharmos para o passado temos a chance de concebê-lo diferente sob o ponto de vista moral e sob o ponto de vista das nossas ambições para o futuro. O que podemos mudar do passado “é a carga moral, o seu peso da dívida”.
O perdão não busca apagar a memória e nem produzir esquecimento dos fatos. Perdoar é alterar o sentido moral do passado. O perdão é “um trabalho que tem início na região da memória e que continua na região do esquecimento” daquele sentido nocivo e maléfico, e não do fato histórico. Tudo o que nos acontece permanece registrado em nossa memória: ou como uma simples lembrança indolor ou como um fardo doloroso que nos afeta e nos aflige continuamente.
O perdão é a porta para a liberdade
O perdão resgata a liberdade. Liberdade entendida como escolha não mais determinada pelo ódio, mas sim pela consciência livre, a qual escolhe uma vida despida de vingança. Quem opta pelo perdão, além de poder caminhar no território da liberdade e do futuro, jamais deixa de exigir e se comprometer com a justiça.
Perdoar não é cessar de combater ou abandonar a busca pela justiça e pela aplicação da lei. Quem perdoa combate alegremente e de maneira serena. Como bem observa Comte-Sponville: a pessoa que perdoa não elimina o fato ocorrido, mas o rancor; não extingue a lembrança, mas a ira; não pensa em abrir mão do “combate, mas do ódio”. Quem perdoa renuncia a odiar e a estar determinado a agir de acordo com a determinação do passado. Perdoar, desse modo, é readequar o sentido do ocorrido, não para isentar quem nos prejudicou, mas para poder viver livremente e liberto do cárcere do ódio.
A pessoa que conseguir trilhar as sendas do perdão não estará mais presa psiquicamente ao passado, mas aberta a um novo início, isto é, a um novo ciclo. O perdão não é um ato covarde ou um ato de submissão, mas um ato nobre e virtuoso, fruto de uma escolha fertilizada pela racionalidade e pela liberdade.
O perdão forja um futuro divorciado dos sentimentos de tristeza (ódio, rancor, ira) e empobrecedores, os quais aniquilam a vida e comprometem o cultivo do amor.
Itamar Luís Gelain
O autor, colaborador desta Revista, é
doutor em Filosofia pela Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC).
Professor no Centro Universitário –
Católica de Santa (CATÓLICASC).
E-mail: itamarluis@gmail.com