Cultura do cancelamento
A cultura, também através da linguagem, produz outras culturas. A linguagem é uma grande produtora cultural e divulgadora.
Ultimamente tem surgido no vocabulário o termo: “cultura do cancelamento”, que está muito conectada com o mundo virtual e da internet, sobretudo às redes sociais. Essa cultura tem muito a ver com o que os outros pensam das outras pessoas, ou seja, o que as outras pessoas poderão pensar de nós. Essa cultura poderá fazer com que passemos a ser dependentes dos outros e tornar-se uma regra. Ou seja, como escreveu o psicanalista Christian Dunker, é como se fosse uma convicção de que a realidade dependesse mais de nós mesmos do que dela própria. Entra em cena a busca do reconhecimento nos espaços sociais, sobretudo digitais, e consiste em ver como a nossa imagem se dissolve no ar.
Para o psicanalista Dunker “a cultura do cancelamento aprofunda e radicaliza a prática da lacração, entendida como pronunciamento contundente e definitivo que tende a silenciar o outro”. Porém, cancelar significa suspender, reduzir o outro a um simples objeto. Nesse sentido, quando alguém não gosta de declarações ou outras coisas do outro, facilmente o cancela e isso poderá destruir reputações, criam-se oposições e tudo se reduz à participação ativa em debates e diálogos. Simplesmente assim: “não gostei, portanto, cancelo”. Por outro lado, existe também um prazer nesse ato, funciona como uma prática psíquica e denota dificuldade para lidar com quem pensa diferente, com quem é diferente e por aí vai.
O cancelamento abre a possibilidade de ir contra quem poderíamos nos identificar, ou seja, estar incluído na mesma categoria do outro, pois vivemos numa sociedade narcisista em que se preza ser diferente, ser único e não ter, assim, afinidades com as outras pessoas. Isso significa, no final das contas, uma busca pelo reconhecimento, é uma vingança feita com as próprias mãos. O cancelamento significa também um linchamento, de que somos superiores e aplaca nossa irrelevância segundo o citado autor, que também representa o narcisismo digital.
Nas redes sociais existe o medo ser cancelado e perder o reconhecimento que é a base de sustentação. Esta cultura é uma espécie de muro para tornar invisível quem pensa diferente de mim e um sinal do esgotamento do ego. Por isso que cancelar é um ataque à reputação da pessoa cancelada.
Galiano, psiquiatra uruguaio, escreveu que: “A atitude é tomada quando a pessoa ou empresa expressa uma opinião que pode ser questionável, ou adota uma conduta tida como inaceitável para a moral de uma sociedade ou de um grupo dentro de uma sociedade”. Para esse autor, essa cultura recebe críticas e elogios: “A grande crítica a respeito desse movimento é que, apesar da ideia ser nobre, a execução pode apresentar problemas. O cancelamento age como uma punição mais do que como apontar uma conduta errada e permitir que aquele que cometeu o erro se redima. Ao mesmo tempo aquele que pede o cancelamento pode estar fazendo um julgamento precipitado de situações que por vezes são mais complexas do que aparecem na mídia”,
Por outro lado, a cultura do cancelamento permite que as pessoas pensem um pouco antes de publicarem algo, pois está sempre em jogo sua imagem. Porém, correm o risco de sofrerem julgamentos imediatos, que uma vez ter errado será vista para sempre com esse olhar e se define a pessoa por um mero momento.
Podemos nos perguntar: o cancelamento seria a melhor forma de lidar com o problema? Facilmente poderemos deletar alguém das redes sociais sem ao menos pensar naquilo que disse, pois simplesmente não se concorda e apaga-se da lista. Esse é um dos problemas da atualidade: a dificuldade para pensar. Tudo o que perturba não se quer pensar sobre porque representa algum tipo de ameaça, e pensar significa permitir que esses conteúdos entrem no psiquismo sendo comum que o aparelho para pensar não seja acionado. Para Bion, psicanalista inglês, é importante que alguém nos ajude a conter as emoções mais contundentes e desenvolver o aparelho para pensar. A capacidade para pensar permite perceber o que é meu e o que é do outro; fazer essa distinção é importante para poder lidar com o mundo e com as pessoas.
Quando não se tem um aparelho pensante facilmente faz-se um corte. Faz-se também uma polarização entre o que é bom ou ruim e não se percebe que existe algo de aproveitável em tudo, e a pessoa fica nas margens somente.
O psicanalista Volkan chama de “psicologia de fronteiras” porque as pessoas compartilham somente uma parte delas mesmas. Isso tem implicações importantes para a cultura do cancelamento, para evitar aquilo que não se concorda ou nem quer saber porque não faz parte do próprio modo de pensar. Faz-se uma supressão que funciona até certo ponto, mas não tem acesso às experiências. Ter acesso às experiências significa se expor. Assim fica-se cancelando tudo para evitar de imediato algum sofrimento. Ou seja, é como se usasse um removedor de manchas sem limpar nada.
Para a cultura do cancelamento tudo é muito rápido, se quer soluções imediatas e nada é duradouro, mas passageiro. É a lei do mínimo esforço porque não se quer enfrentar as ideias, os problemas de frente, mas evitá-los a todo custo e isso significa “varrer a sujeira para baixo do tapete”.
A tecnologia que temos à disposição facilita muito a cultura do cancelamento. Possibilita estar e não estar ao mesmo tempo em algum lugar ou com alguém. Quando o ambiente ao redor é sentido como enfadonho, não é como se quer e deseja, lança-se mão de um smartphone, por exemplo, e crio um outro ambiente de acordo com os próprios desejos e vontades. Portanto, essa cultura é um meio muito “prático” para não interagir com quem ou aquilo que se considera fora do próprio modo de pensar.
As relações poderão se tornar efêmeras, passageiras, sem vínculos e o outro ser visto como um objeto que satisfaz ou não. Não satisfaz, se cancela.
O autor, Pe. Sérgio Lasta, é piscologo, doutor em Educação e padre palotino em Santa Maria (RS)
Texto publicado na edição de dezembro de 2020.