Contar de Novo
Desde pequeno que eu penso em como seriam as histórias clássicas se elas continuassem depois do “e foram felizes para sempre”. E ainda mais depois que o poeta Vinícius de Morais relativizou esse “para sempre”, quando disse que o sempre (ele usou mesmo a palavra “eterno”) é infinito enquanto ele dura! Pronto! O para sempre estava salvo da eternidade, da repetição monótona e da mesmice!
Mas, quando se trata do universo infantil, toda e qualquer mudança numa história clássica, costuma vir acompanhada de reclamações do tipo: “não é assim”!; “você trocou tudo”!; “a história está errada”… As crianças gostam de ouvir as mesmas histórias, muitíssimas vezes, e do mesmo jeito, por uma série de motivos. Sabe-se lá que conceitos elas vão fechando em suas cabeças enquanto ouvem e vão reconhecendo os diversos papeis sociais, as ações e reações esperadas etc… no mínimo aprendem a lidar com as soluções, os possíveis enredos da vida e com a força dos sentimentos.
E claro, aprendem também sobre a esperança (o que é um grande alívio para esse reino de lágrimas em que muitas vezes vivemos!): o início pode ser difícil e cheio de provações, mas o final pode compensar todas as agruras. E como a solidariedade ainda impera e predomina nos contos clássicos, há sempre um ajudante (mágico ou não) para auxiliar o herói a atingir os seus objetivos.
Só que como uma história é um “recorte”, muitas vezes não sabemos o que veio antes e o que vem depois! E claro, essa zona obscura, oferece ao escritor, ao leitor, ao sujeito uma infinidade de possibilidades imaginativas! Todo mundo é livre para criar essas informações que estão nesse “entre-lugar”. E além do mais, essa “fatia a ser preenchida” guarda um grau de independência tão grande que vai permitir as mais variadas leituras, propostas, exercícios de imaginação, porque está diretamente ligada ao universo de quem propõe. É a bagagem do leitor, do escritor, do imaginador que vai fazer surgir e vigorar (no sentido mesmo de dar vigor, de tornar potente, crível) outras camadas de uma velha história.
Ao longo dos anos, lidando com os contos populares, fui percebendo, cada vez mais, que as histórias clássicas que povoam o meu imaginário, desde a mais tenra idade, são guardados de afetos. Elas estão carregadas de uma porção afetiva, porque envolvem tempos e lugares… como casa da avó, voz da mãe, canção cantada pela tia, ou seja, todos os narradores orais que foram trançando a minha infância. Com os outros leitores também é igual. Nossas histórias infantis vem carregadas desses perfis, dessas biografias que vão dando opulência maior para umas e menor para outras histórias.
Temos visto surgir no mercado editorial, pelo menos ao longo dessas últimas três décadas uma série de continuações, releituras, versões dos contos clássicos. Há uma tentação grande em querer “atualizar” essas histórias. Não necessariamente trazê-las para o nosso tempo, mas injetar nelas vida nova para que sigam fazendo parte do imaginário popular. Quase sempre o caminho escolhido é o da paródia, ou seja, o do humor, do deboche, da brincadeira com personagens e enredos tão largamente conhecidos. Talvez a mais conhecida “mexida” nessas histórias, no Brasil, seja a que oferece o livro “A verdadeira história dos três porquinhos”, de Jon Scieszka (aqui publicado pela editora Companhia das Letrinhas em 1993), um verdadeiro mestre em brincar com as histórias populares mais queridas dos leitores espalhados pelo mundo! Um sucesso arrebatador que o levou a publicar mais algumas histórias modificadas, como as dos livros “O patinho realmente feio e outras histórias malucas (1997)”,
“O sapo que virou príncipe (1998)” etc.
Mas não podemos esquecer que em solo brasileiro, o autor Pedro Bandeira, desde os anos 80, fez do seu “O fantástico mistério de Feiurinha” (publicado primeiramente pela editora FTD e atualmente pela Moderna) um clássico obrigatório. Com essa proposta de investigar o que havia acontecido com as princesas dos contos de fadas depois do “e foram felizes para sempre”, o livro conquista leitores até hoje e já virou peça de teatro, filme da Xuxa e foi o ganhador da categoria infantil do Prêmio Jabuti de 1986.
Portanto, revisitar de forma transformadora a tradição dos contos de fadas clássicos é uma constante aqui e no mundo. E nessa linha, o que me arrebatou nos últimos tempos foi o livro
“O dia em que chapeuzinho vermelho desencalhou”, de Mônica Martins, com ilustrações de André Flauzino, publicado pela Moma Editora (2019).
A autora parte da ideia de que Chapeuzinho Vermelho foi a única personagem dos contos de fadas a ficar solteira e resolve dar a ela um par, depois de tantos anos de reclamações e espera.
A história é bem divertida, escrita numa linguagem fluente, atual, com muitos elementos trazidos da tradição mesclados com elementos dos novos tempos… O que o leitor não espera é uma Chapeuzinho Vermelha distraída, comilona, contrariada e ousada a ponto de escrever uma carta aos Irmãos Grimm, para reclamar da sua solteirice!
Particularmente gosto do encaminhamento que a autora dá para a história e as instituições que inventa, como o CPCOF (Centro de Pesquisa dos Contos de Fadas), UFF (União Federal das Fadas), PROALE (Patrimônio Real Ostensivo e Alerta), além da CPI (Comissão Perguntadora Interna) e da Fada SOS (Socorro Orientador de Solteirice), que é uma personagem atrapalhada, com uma vestimenta vermelha que a faz parecer mais um abajur do que qualquer outra coisa! A busca que elas fazem, com um catálogo telefônico que a fada tira do bolso e o computador, que ela tira do chapéu, tornam os diálogos entre elas divertido e dinâmico. E mais não conto, para não estragar a história que é contada por uma narradora disfarçada na tal fada fofa Moma…
As ilustrações de Flauzino captam e ampliam o humor do texto. Trazem cortes e ângulos inusitados, além de se esbaldarem no uso da cor vermelha e numa certa brasilidade na configuração das personagens.
Abril é o mês em que se comemora internacionalmente o livro infantil, o mês em que o dia 02 é dedicado a divulgar a literatura para os pequenos leitores no mundo inteiro e destacado para se pensar em estratégias para a conquista de novos leitores. A data é relativa ao nascimento de Hans Christian Andersen, considerado o pai da literatura infantil. Mas junto com eles, também haveremos de celebrar Charles Perrault, Irmãos Grimm que também trouxeram para as suas coletâneas a clássica história da Chapeuzinho Vermelho.
Também haveremos de celebrar Pedro Bandeira e sua vasta obra, que também serviu de base para esse gostoso livro de Mônica Martins (anteriormente publicado pela Scortecci Editora e finalista do Prêmio Jabuti em 2017). Viva o livro infantil de qualidade!!!!
Publicado na edição de abril de 2020
Bela e merecida resenha sobre esta obra de Mônica Martins! Seus livros são realmente um tesouro de criatividade e reinvenções!!!