Artigos › 17/08/2022

Nos encontramos na oração

Nos encontramos na oração

 

Era noitinha. Daqueles entardeceres que, a princípio, se parecem com todos os outros, mas a diferença não estava “no que”, mas, “onde” aquele fim de dia acontecia. Era na casa dos meus avós. O silêncio do dia que acabava, tomava os cômodos, os corredores e, até mesmo, as ruas da pequena cidade iam se enchendo de murmúrios leves, como se as vozes silenciassem por um motivo em comum. Era a hora da Ave-Maria, do ângelus, que cada um rezava a seu modo e em seu lugar.

Passando displicente pelo corredor, vi através da porta entreaberta a figura de um senhorzinho ajoelhado em oração com o terço nas mãos. Era meu vovô. Ele me viu, sorriu monalisamente para mim e continuou rezando.

Lá se vão mais de cinquenta anos. Eram os anos 60. Mas, essa imagem nunca se apagou. Da voz dele lembro pouco, ele rezava quase cochichando, só os “esses” eram audíveis como num ritmo quase musical.

O tempo passou rápido, nos despedimos e ele “foi pro céu”. Era assim que falavam da morte. A morte do avô é muito doída, porque uma parte da infância morre também. E, a criança nem sempre consegue falar da sua dor e encontrar sentido no “nunca mais”, no “para sempre”, no “está com Jesus”.

O luto infantil é um processo iniciado na infância, mas que reclama por entendimento até a vida adulta.

Nos dias em que as palavras somem e o rezar é feito de silêncio, eu penso nele, no seu olhar tranquilo, na sua oração-cantiga do anoitecer e, penso que neste momento ele está com Deus, rezando como quem cochicha e, talvez, pensando em mim. Desta forma nos encontramos, na oração.

 

 

A autora, Sonia Sirtoli Färber, é colaboradora desta revista, Tanatóloga e doutora em Teologia

Texto publicado na edição de agosto de 2022

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