Sala de aula
Hoje era dia de fazer cálculos! E eu nem gosto tanto de matemática! Depende: quando consigo ver, operar no concreto, gosto. Quando são equações e números que não fazem o menor sentido pra mim, não gosto! Talvez alguém que tenha um pensamento matemático diga o mesmo das palavras! Quando é uma palavra concreta, tipo prédio (que envolve cálculos e mais cálculos matemáticos para ser produzido), a pessoa certamente vai gostar. Agora, se é uma palavra abstrata, tipo uma qualidade, como honestidade ou beleza, como é que se calcula e se mede isso? Mas o pensamento matemático vê beleza nas suas fórmulas, e eu vejo beleza no arranjo das palavras. Daí, sou professor de literatura (não só, sou também professor de teatro e de artes visuais…mas hoje vou falar só da literatura). Hoje, o cálculo que eu tinha pensado em fazer era: quantas aulas eu já tinha dado? Quantos alunos já tinham passado por mim? Quantos se lembrarão do que conversávamos em aula? Quantos escolheram um caminho similar ao meu? Fiquei pensando…
De tudo o que eu faço, gosto mesmo é de estar na sala de aula! Lugar desafiador desde os primeiros tempos! Nunca pensei nesse espaço como um lugar para despejar conhecimento goela abaixo dos meus alunos. Não! Inadmissível! Sala de aula é lugar de construção, de sedução e de afeto. Parece bobagem ou fantasia?! Pois que seja! Fantasia é mesmo a matéria-prima das minhas aulas!
Mas a guinada decisiva só veio mesmo quando a literatura infantojuvenil apareceu no meu caminho. Eu já tinha passado pela Faculdade de Letras, já estava formado em Teatro e fui finalmente fazer uma Especialização em Literatura para Crianças e Jovens. Nesse momento, a “equação matemática do universo” se resolveu: tudo entrou nos eixos, tudo entrou em seu lugar. Ali eu tinha me encontrado. E de fascínio em fascínio, com cada livro que eu relia ou era apresentado, a certeza do caminho ia se solidificando.
Hoje tenho alunos que já são mestres e doutores! Mas ainda me lembro de como os encantava, com as histórias que eu lhes contava. Com o livro na mão ou sem o livro, com a memória servindo de apoio para a literatura oral que eu tanto amava (e amo), ou o objeto mágico que fazia aparecer mundos, o importante era o pacto que estava feito: abrir a porta da imaginação e ficar morando por lá o tempo que fosse preciso e necessário. Era nítido quando o convite era aceito e a viagem era empreendida. Voltávamos todos de lá renovados e cheios de ideias e mais ideias. E aprendíamos tanto sobre nós. Sobre os outros. Sobre as coisas que queríamos para nós e para que o nosso espaço de vida e trabalho pudesse ser cada vez melhor. Enfim, sentíamo-nos cidadãos interligados pela beleza da palavra narrativa e poética.
Mesmo na universidade, trabalhando com adultos, eu tinha (e tenho) esse mesmo objetivo: meu discurso de professor tem que ser tão sedutor e tão encantatório que o meu aluno saia dali diretamente para o livro. Acredito mesmo é na força da leitura. E no papel do professor como promotor da leitura. Tudo isso é importante, mas se faltar o ingrediente da paixão, pode não funcionar. Paixão em estar na sala de aula, principalmente.
Paixão parece coisa de romântico, né? Que seja, sou um romântico da leitura e um amante da sala de aula. Por isso, para o mês de outubro, estou indicando a leitura do livro “A bolsa amarela”, de Lygia Bojunga Nunes. Há várias edições circulando por aí… O livro estreou na editora Agir e atualmente pertence à editora Casa Lygia Bojunga e já está em sua 35ª edição (só de pensar que a edição que guardo até hoje foi ilustrada pela Marie Louise Nery, minha professora de cenografia, na Faculdade de Teatro, me enche de gratidão e alegria).
A minha indicação é mesmo para celebrar a importância desse profissional chamado professor. Não é que o livro seja sobre isso, não! O livro apareceu na minha vida no momento em que eu descobria exatamente que eu queria estar na sala de aula, trabalhar com literatura infantil e juvenil e ajudar a conquistar leitores. Foi exatamente quando comecei a Especialização que descobri Lygia Bojunga e sua maravilhosa obra. Nunca mais deixei de lê-la. Nunca mais me separei dos seus livros. Amor literário para todo o sempre!
Mas o livro em questão, além de estar atualmente no centro de uma discussão canhestra, retrógrada e inconcebível, revela a manipulação de uma leitura burra e desinformada, que na cidade de Limeira (SP) provocou polêmica, porque Raquel, a personagem principal e narradora da história, guarda numa bolsa amarela as suas três principais vontades: a de ser logo adulta, a de ter nascido menino e a de ser escritora. Tudo vai girar em torno disso. O livro é tão humano, tão cheio de soluções lúdicas e emocionantes, tão sedutor e escrito em uma linguagem tão coloquial e ao mesmo tempo tão inventiva para o âmbito dessa literatura (a primeira edição é de 1976), que os argumentos de um vereador local, que acusa o livro de disseminar ideologia de gênero, só revela completo desconhecimento da obra em questão e de toda a trajetória da autora. O estreito leitor não entendeu nada: não entendeu que Raquel, na busca de ser aceita como uma criança que tem vontade e quer ter voz, que usa o exercício da invenção e da escrita para transmutar suas dores e dúvidas e que ao fim, se reconcilia com sua condição de menina, criança e dona de seu próprio destino, só pode mesmo é servir de bom exemplo para aqueles leitores entre 10 e 11 anos, da rede municipal de educação da cidade e de qualquer outro tempo e lugar.
O rótulo de “lixo ideológico” – como ele denomina o livro em questão – revela, na esteira da praga do politicamente correto, uma opinião sem base, covarde e um reprovável ato de censura a ser rechaçado por nós, profissionais da área e leitores especializados!
Viva a Bolsa Amarela e Viva Lygia Bojunga, que sempre enxergou longe, e fez de Raquel uma das personagens mais louvadas e emblemáticas da literatura infantojuvenil contemporânea!
Publicado na edição de Outubro de 2019