Artigos › 09/05/2023

O ser humano é um cadáver adiado

O ser humano é o único ser que tem consciência da sua finitude, ou melhor, da sua condição de mortal.

 

 

“Morrer: Que me importa?

O diabo é deixar de viver”.

(Mario Quintana)

 

 

Os animais, diferentemente de nós, são mortais, mas não estão sujeitos à angústia da morte. Não são atormentados nem pelo passado e nem pelo futuro. Nós, ao contrário, vivemos continuamente afetados pela morte e por todas as consequências que ela traz. O mito de Tântalo lembra-nos bem desta condição a que estamos sujeitos. Tântalo foi punido pelos deuses pois ousou desafiá-los e, por isso, recebeu um duro e pesado castigo. Para lembrar-se de sua condição de mortal, foi acorrentado no Tártaro, onde uma enorme pedra estava suspensa sobre sua cabeça e ameaçava cair a qualquer momento e matá-lo por esmagamento.

Assim como Tântalo, vivemos sob a ameaça da morte. Não sabemos quando a “gadanha da morte” virá visitar-nos, ou melhor, quando a pedra (morte) despencará sobre nossa cabeça. Isto não está em nosso domínio. O que sabemos, de fato, é que ela vai despencar e, além disso, à medida que o tempo concedido a nossa existência vai exaurindo-se a queda mostra-se cada vez mais próxima.

No entanto, quando falamos em morte, precisamos lembrar de dois sentidos importantes. Morte como o fim da vida e morte como um processo gradual de um caminhar em direção ao gran finale. No primeiro caso, a morte significa o fim de tudo, ou melhor, o término do período de tempo a nós reservado sobre a Terra. Talvez a morte, como evento final, atormente-nos não por ela mesma, mas pela separação que autoritariamente ela impõe-nos das pessoas que amamos e o sofrimento que pode precedê-la.

No segundo caso, a morte tem outra conotação, ou seja, tomamos consciência de que o homem é “um cadáver adiado”, para usar uma expressão de Fernando Pessoa. Aqui, a morte seria entendida como aquela companheira silenciosa que fala ao nosso ouvido que a areia da ampulheta da existência escorre ininterruptamente com

alguma velocidade. Heráclito teria observado que o homem vive de morte e morre de vida. Vida e morte são duas realidades que subsistem juntas. A vida termina com a morte e a morte termina com a vida.

Mario Quintana alertou poeticamente que a “minha morte nasceu quando eu nasci”. Nessa perspectiva, a morte pode ser entendida como um processo a que estamos submetidos desde que nascemos. Heidegger, por sua vez, teria ensinado que quando nascemos já começamos a morrer, ou, numa formulação mais dramática, nascer não é só começar a viver e sim também continuar morrendo. Nós morremos aos poucos, ou melhor, morremos vivos. Somos mortos vivos.

O professor Jelson Oliveira afirma que “O morto habita o vivo e o vivo não passa de um instante de resistência ao morto, sabendo de antemão que vai perder a batalha a qualquer instante”. E ele continua: “Todos os dias são dias de morte e a vida é um velório”. Essa ideia da vida como um velório nos coloca justamente na percepção clara que a vida vai se extinguindo instante a instante. Velamos o nosso corpo vivo que morre ininterruptamente. Vivemos continuamente a dialética da vida e da morte na expectativa que a síntese seja a contínua superação da vida sobre a morte até que a morte permita.

Todavia, em um tom mais suave, morte é tudo aquilo que fica depositado no passado. Morte remete àquilo que não voltará mais, isto é, a nossa infância, a força dos dezoito, o primeiro beijo, os lugares que visitamos, as experiências que tivemos, entre outras tantas coisas. Tudo isso deterministicamente fica armazenado no território do pretérito, isto é, na sepultura do passado. Só podemos acessar essas coisas vasculhando a memória, quando ela os permite. Enquanto há memória, há resistência. Quando o esquecimento for definitivo, a morte será absoluta.

Itamar Luís Gelain

O autor, colaborador desta Revista, é Licenciado em
Filosofi a pela Faculdade Palotina (FAPAS). Mestre em
Filosofi a pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
Doutor em Filosofi a pela Universidade Federal
de Santa Catarina (UFSC).

2 Comentários para “O ser humano é um cadáver adiado”

  1. Antonia A F Iannini disse:

    Excelente texto.

  2. Ranier disse:

    Gosto muito do verso da canção “Endeavour”, do saudoso vocalista e frontman do metal brasileiro, Andre Matos: “O tempo é o destruidor da vida” (escrita originalmente em inglês como: Time is life’s destroyer).

    O tempo, de fato, é a grandeza da física capaz de aniquilar tudo. Nada escapa dele e tudo está fadado a “sofrer” seus efeitos e perecer por conta dele.

    Nesse meio tempo (o lapso temporal da vida), nós nascemos, choramos, sorrimos, amamos, odiamos, lutamos, vibramos, nos decepcionamos, nos entristecemos e etc… e morremos!

    Morrer faz parte do “jogo da vida” desde o nosso surgimento no mundo, mas, que a verdade é sempre muito mais difícil de ser assimilada por conta do nosso auto instinto de preservação e sobrevivência.

    É por isso que, o nosso mindset está sempre tentando dar um jeito para “nos convencer” do contrário; ou seja, conscientemente sabemos que tudo vai acabar e, mesmo assim, nós estamos rejeitando toda ideia de finitude, de maneira inconsciente.

    Quando o correto era nos pegar na ideia de de viver de forma que tudo valha à pena.

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