Artigos › 30/11/2024

Luto e morte simbólicas nas cantigas infantis

Gerações inteiras foram embaladas por cantigas de roda e de dormir que, tranquilas e reconfortantes pouco ou nada tinham. Atualmente, estas músicas vêm passando por revisão e mudaram os critérios para que possam tanto serem aceitas quanto apropriadas para bebês e crianças em formação.

Antes de qualquer análise, há que se fazer justiça histórica haja vista que o cancioneiro é parte integrante da cultura de um povo e, portanto, é em certa medida, a expressão do pensamento e da cosmovisão de um recorte da sociedade. Dito isso, vale lembrar que as cantigas caíam no gosto das pessoas mais pela cadência e pelo ritmo do que, especificamente, pela letra que, muitas vezes, nem era motivo de atenção.

Como pode um bebê ou uma criança na primeira infância se sentir segura e acalentada quando a música cantada para ela dormir diz “boi, boi, boi da cara preta pega essa criança que tem medo de careta”? O medo é sentimento forte e que pode ser alimentado quando a situação atinge os elementos que provocam o medo na pessoa.

Não só o medo, mas, também, a culpa é sentimento que causa intenso sofrimento. E, ainda que para aliviar o peso da cantiga fosse dito que era “apenas brincadeira”, crianças foram impactadas com a cantiga de roda interativa que dizia: “a canoa virou. Pois deixaram  ela virar, foi por causa do (fulano/a) que não soube remar. Se eu fosse um peixinho e soubesse nadar eu tirava o (fulano/a) lá do fundo do mar”. A letra chama as crianças, alternadamente, a assumirem o papel da pessoa inábil que causa a morte de outra pessoa, enquanto todos cantam o desejo de terem como resgatar o (fulano/a) que caiu nas águas.

Em outra cantiga, a violência doméstica, um tipo morte simbólica muito severa, é cantada pelas crianças que narram a briga do cravo com a rosa o que causa ferimentos e desmaio. Normalizar a violência como se ao afirmar que  atirou um pau no gato, mas que ele não morreu, fosse uma ação aceitável; fez com que gerações inteiras crescessem sem questionar o sofrimento vivenciado no silêncio do ser ou no interior do lar.

Mortes simbólicas também demandam luto, tempo de cicatrização das feridas oriundas de perdas. E, todo cuidado e zelo deve ser dispensado aos pequenos que, por sua condição de prematuridade e desenvolvimento emocional e psíquico, são os mais impactados pelas palavras que lhes são dirigidas e conceitos que lhes são incutidos.

 

 

 

Sonia Sirtoli Färber

A autora, colaboradora desta Revista, é Tanatóloga e doutora em Teologia

clafarber@uol.com.br

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