Artigos › 17/05/2021

As pessoas invisíveis

Você tem observado mudanças no comportamento das pessoas durante essa pandemia? Caso ache que nada mudou, observe mais atentamente o seu bairro. Acredito que algo mudou sim, e pode ter sido para melhor!

Tudo começou com a Dona Maria. Ela tem cerca de 70 anos e é moradora de rua, perambulando por vários bairros. Era comum ver pessoas a ajudando; afinal, se trata de uma idosa.

No entanto, a situação econômica se agravou com a pandemia e começaram a surgir outras pessoas em situação de rua. No meu bairro tem várias, mas conheço ao menos outras três de modo especial: o Cléber, a Margareth e o Anderson.

O Cléber é doente mental. Tem mais de 40 anos e parece um adolescente, com ossos à mostra, perambulando e falando coisas sem sentido. Só sabe pedir comida e vê inimigos imaginários em toda parte. Já chamamos a SAMU e ele foi internado várias vezes em um hospital psiquiátrico público da minha cidade. Ele fica lá uns dias, melhora…. e foge. Imagine um leão preso num apartamento pequeno.

É o Cléber internado. Ele gosta da rua, se criou na rua e, às vezes, até usa droga como forma de escapar da realidade.

A Margareth tem 37 anos e é uma pedinte simpática, querida, falante e “exigente”. Ela me chama de “padrinho” e me pede pão, patê de fígado (não pode ser outro) e refrigerante. Algumas vezes até me pediu “uma geladinha” (cerveja); afinal, ninguém é de ferro. Você já conversou com alguém assim?

O Anderson é jovem e com sérios problemas emocionais. Nunca teve família, não estudou e não arruma emprego. Varre calçadas do comércio local em troca de um pouco de comida.

Nas cidades pequenas me parece mais difícil encontrar tantas pessoas assim, mas nas grandes cidades elas parecem se multiplicar cada vez mais.

O Pe. Júlio Lancellotti, da Pastoral dos Moradores de Rua de São Paulo, faz um trabalho extraordinário em favor dessas pessoas e também denuncia os maus tratos a que elas são submetidas. Se não enxergarmos a figura de Cristo nesses irmãos, como poderemos falar de amor?

Um dos trabalhos científicos mais corajosos e interessantes que conheço foi feito por um psicólogo paulista chamado Fernando Braga da Costa. Ele estava fazendo mestrado em Psicologia Social na USP e vestiu o uniforme de um gari por vários anos! Ele varria as ruas da própria cidade universitária, que é bem extensa.

Entre as conclusões a que ele chegou, na defesa da sua dissertação, é a de que ele se sentiu um ser invisível. As pessoas geralmente só enxergam o outro por sua função social. Quem sabe o nome do gari do seu bairro? Quem se preocupa com o entregador de jornal, o padeiro, o empacotador e semelhantes trabalhadores?

O interessante é que ele ”trabalhava” só meio turno como gari. No outro turno ele era um universitário, ou seja, respeitado, cumprimentado e com quem se estabelecia diálogos.

Bastava colocar o uniforme de gari para não ser olhado, não ser reconhecido, nem cumprimentado, nem nada. Ele era realmente alguém anônimo, descartável. E, por favor, não me venham culpar o capitalismo por isso. Esse fenômeno ocorre em todas as sociedades e há muito tempo.

Segundo o próprio psicólogo pesquisador, o que restou dessa experiência incrível foi uma grande lição de vida. Temos que valorizar urgentemente as pessoas pelo que elas realmente são.

Não gosto de generalizações. Geralmente elas vêm acompanhadas de muitas injustiças. Não posso dizer que todos os moradores de ruas são santinhos, tampouco o são todos os que ocupam boas posições sociais.

O filósofo espanhol Ortega y Gasset já bem dizia: “Eu sou eu e minhas circunstâncias”. A comédia “Trocando as bolas” (1983), com Eddie Murphy, mostra bem como uma troca nos papéis sociais pode alterar completamente a vida de alguém.

É muito fácil rotular um morador de rua de vagabundo, bêbado ou algo similar, mas eu não sei se eu conseguiria sobreviver um mês na situação em que eles vivem. Vocês sabem porque muitos moradores de rua consomem bebidas alcoólicas? Porque o álcool disfarça a sensação de fome e porque a cachaça é bem mais barata do que um prato de comida.

Nunca fui rico. Sou classe média e me sinto bem assim, mas nunca me faltou um teto, uma refeição, uma cama e um banheiro. Além disso, nos meus problemas eu tinha familiares e amigos para me escutarem e apoiarem. Também tive condições de procurar um psicólogo ou um médico e comprar medicamentos. Isso é fundamental e decisivo em alguns momentos da vida.

A crise social certamente nos deixou mais reflexivos e mais próximos. Quase sem querer nos tornamos mais humanos, mais solidários. Observo muito mais gente ajudando os necessitados.

E quem ajuda descobre que também está sendo muito ajudado, pois ao exercer a bondade nos tornamos melhores e mais inteiros em nossa essência. Além disso, escutar moradores de rua pode nos fornecer valiosas lições de vida. Eles são sobreviventes, são guerreiros, que não desistiram de viver.

Se teve uma coisa boa que a pandemia nos trouxe foi essa noção da nossa fragilidade e de nossa igualdade. Ela atingiu pobres e ricos, mas espero que nos tenha feito mais humanos, mais cristãos, pois caso contrário terá sido tudo em vão.

O autor, Carlos Veit, é colaborador desta Revista e professor, jornalista e psicólogo clínico em Porto Alegre (RS)

Texto publicado na edição de maio de 2021. 

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