Lugar na Prateleira › 11/05/2020

Os contos populares acendem a imaginação e embalam o coração

Quando entrar agosto e as histórias se espalharem pelos quatro cantos do país, vamos lembrar que é o mês do folclore.
Ê palavrinha complicada! Mas a intenção é louvável: em um ato do ano de 1965, o Congresso Nacional instituiu o dia 22 de agosto como o dia do folclore brasileiro. Era uma forma de valorizar e homenagear as histórias e os personagens do imenso caldo cultural que é o Brasil.
Ainda acho a palavra “folclore” difícil de aceitar. Palavra estrangeira, muito datada e, por vezes, restritiva! Explico. Prefiro o termo cultura popular. Aliás, prefiro a expressão “culturas populares”, assim, no plural mesmo, porque afinal, somos a soma de várias culturas, não é mesmo? Como falar em cultura popular, como se fosse uma só? E aqueles anos pós-64 precisam ser vistos com cuidado.
De todo modo, estamos falando de contos, mitos, lendas, fábulas, causos, essas narrativas contadas pelo povo, mantidas no tempo pelo ato de narrar oralmente e espalhadas com amor e com maestria, pelos antigos. Coisa de avó e avô, coisa dos velhos e velhas sábios dos lugares escondidos, que usavam as histórias para entreter, confortar, exemplificar, justificar, louvar e até mesmo assustar as pessoas ao redor do fogo ou da escuridão ambígua das velas, lampiões e lamparinas.
Um bom contador desses, que sabe modular a voz, usar o ritmo da fala, caprichar na expressão facial, que parece ter uma memória infinita, e que sabe escolher a história certa para a hora certa, causa espanto e interesse em toda gente. Nas crianças, então, nem se fala! Se fizermos um rastreamento na nossa lembrança, vamos constatar quão inesquecíveis são essas pessoas que contavam (ou ainda contam!) essas histórias simples, da vida concreta e vivida, ou da vida suposta, cheia de peripécias, magias, encantamentos e seres fantásticos, com episódios tão incríveis que nos mantinham presos do início ao fim. Muitas vezes, só respirávamos livremente depois que a história terminava! E a imaginação explodia em conexões, em meio a palavras de entusiasmo ou de espanto e incredulidade.
Quanta gente desenterrei da memória com esse assunto! Odete, que nos trouxe um porquinho-da-índia; Dona Silvina, com o pequeno Daniel; a outra Dona Silvina, com suas roupas lavadas branquissimamente!
A memória é um fio mesmo! Comece a puxar e você vai ver onde vai dar! A minha me leva sempre para esse legado de gentes, histórias e lugares que parecem ser sempre o paraíso dos contos.
Mas era na fazenda do meu tio Clóvis que as histórias reinavam… A primeira vez que lá estive, vi de perto a cara do Brasil (isso é uma leitura de hoje, claro!). História para tudo, para andar de carroça, para montar nos cavalos, para cortar o capim, para alimentar o gado, para esperar a chuva passar, abrigado no alpendre, para deixar a porta do quarto trancada durante as horas de sono, para relembrar os parentes, para justificar a comida que vinha pra mesa… Foi aí, exatamente aí que me apaixonei por elas! Anos depois ainda me lembro com exatidão que meninos também sabiam contar boas histórias, e me recordo do Mão-Pelada, na praça da cidadezinha do interior do Rio, nos convocando para as artimanhas, com seus enredos mirabolantes.
Prazer igual encontrei, anos depois, estudando, os contos populares, já como professor de literatura. E sempre fiquei indignado com os alunos que nunca tinham ouvido falar em Sílvio Romero e Câmara Cascudo que, pra mim, são referências básicas!
Prazer ainda maior foi conhecer o Fernando Lébeis, grande estudioso dos contos populares, que narrava os mitos indígenas e as histórias de assombração como ninguém. Inesquecível era ouvi-lo falar de João Tartaruga, artesão de São Luiz do Paraitinga (SP), e das histórias que aprendeu com ele!
Pois para manter acesa essa tradição, mesmo que através da leitura, cheguei aos livros do escritor Ricardo Azevedo, que nos tempos atuais, para mim, é o grande escritor e estudioso, que vai beber na fonte dos contos populares e que os reconta como ninguém. Em especial, para aproveitar esse mês em que as culturas populares ganham o centro das rodas, recomendo o livro “O moço que carregou o morto nas costas e outros contos populares”. Uma publicação de 2015, da Editora Melhoramentos e com ilustrações de Catarina Bessel – que são vinhetas, compostas digitalmente, e que se encontram coloridas, num único pôster, no centro do livro.
No livro estão onze contos populares em linguagem “única e essencial”, como o próprio Ricardo afirma sobre esse tipo de literatura. É nessa simplicidade que reside a grandeza dessas narrativas. É no tratamento do “indizível e do inominável”, por meio de metáforas buriladas e sofisticadas, que estabelecemos conexões imediatas com as questões humanas que atravessam os tempos e as pessoas. São verdadeiros tesouros. E ele assume, abertamente, o seu compromisso em aprender com esse material tão rico, mas também compartilhar e difundir essas narrativas populares. Então, nos deliciamos com os fazendeiros malvados, os casamentos, os heróis transformados em lagartos, a morte disfarçada na moça do vestido preto e muito mais!
Eu também tenho esse compromisso de narrar! E aproveito para terminar esse nosso “encontro” em torno desse assunto e desse primoroso livro com o que diz Orlando Villas-Boas: na tribo, o velho é o dono da história, o adulto é o dono da aldeia e a criança é a dona do mundo. As narrativas populares nos pertencem. E são a melhor maneira de nos mostrarem um país vivo e pulsante, orgulhoso de suas raízes. Um “viva”! a nossas culturas populares!

 

Publicado na edição de Agosto de 2019

Deixe o seu comentário





* campos obrigatórios.