Artigos › 08/10/2024

Convite a autonomia

 “Quem se indaga é incompleto”

Clarice Lispector

De acordo com Arthur Schopenhauer, “durante a leitura, nossa cabeça é apenas campo de batalha de pensamentos alheios”. E acrescenta: “quando lemos, outra pessoa pensa por nós: só repetimos o seu processo mental”. Donde se segue que pensar não é sinônimo de escuta passiva e reprodução automática daquilo que foi lido ou ouvido. Leituras, aulas e palestras nos dão a oportunidade de ter uma janela para olhar para o mundo. Todavia, o modo como vamos interpretá-lo ou pensá-lo, a partir daquilo que recebemos, passa a ser exigência e tarefa que se faz reflexivamente. Pensar requer um movimento criativo e inovador, o qual não se identifica com repetição e reprodução.

Além disso, não basta pensar. Tem que pensar certo. Para Paulo Freire, “pensar certo” exige “não estarmos demasiado certos de nossas certezas”. Pensar certo implica em reconhecer a limitação do que sabemos na esperança de sempre tornar o que conhecemos ainda mais robusto e temperado de crítica e refinamento. Ou seja, a arte de pensar exige estarmos desconfiados de que podemos estar equivocados sobre aquilo que supostamente sabemos. Isso não é ceticismo corrosivo ou anulador do pensamento. Longe disso!

Pensar certo é trabalhar com certezas ou convicções provisórias, reconhecendo que podemos sempre avançar, desde que não estejamos estacionados em verdades absolutas que não admitem críticas e revisões; é também reconhecer a falibilidade das nossas crenças e ideias e se dispor a continuar avançando no processo de investigação e de busca da verdade.

 

Ouse pensar

Segundo Immanuel Kant, fazer uso do entendimento ou da razão é a condição para sair do estado de menoridade (alienação, submissão) e rumar em direção à maioridade (autonomia). O que isso significa? Atingir a maioridade é se apossar do comando das suas decisões e reflexões sendo orientado por uma racionalidade esclarecida e autônoma.

Qualquer tomada de decisão ou opinião precisa ser chancelada pela fagulha de divindade que carregamos em nós, a saber, a nossa inteligência racional. Em outras palavras, a maioridade ou a autonomia é um caminhar reflexivo que encontra no tribunal da razão a censura a tudo aquilo que é autoritário, imposto, doutrinador, enganoso, falso e alienador.

Nesse sentido, o nosso posicionamento ideológico, moral, político e religioso não pode ser fruto da imposição da tradição, dos costumes ou da autoridade de algum sabichão; mas o resultado de um processo banhado de reflexão, no qual o sujeito depois de examinar cuidadosamente as ideias e os posicionamentos sobre uma determinada matéria, assente que tal posição, pelo menos provisoriamente, é a mais adequada e, portanto, a acolhe. Mas, esse acolhimento é vigiado pela dúvida, a sentinela da razão, a qual não nega, mas desconfia e questiona.

 

A busca da autonomia

Assim, educar/formar não é um processo de cabresteamento cognitivo, ou seja, não consiste apenas num assimilar de informação e conhecimento, mas em aprender a se ter nas mãos e tomar as decisões orientado pelo próprio entendimento e não fatalisticamente conduzido por aqueles que idolatramos ou seguimos acriticamente. Do ponto de vista racional, não parece ser tolerável aceitar qualquer ideia que antes não tenha sido submetida ao crivo da razão, isto é, ao exame criterioso e atento.

Educar para a autonomia é equipar a pessoa com ferramentas cognitivas que lhe permite andar pelo mundo com suas próprias pernas e não carregado nos braços das ideologias e das tendências que estão na moda ou surfando na onda. A autonomia é uma posição revolucionária frente a um mundo controlado e dominado por algoritmos que nos oferecem nas redes sociais, por meio de anúncios e propagandas, aquilo que desejamos consumir, uma vez que conhecem nossos desejos e nossos hábitos por meio do nosso comportamento na internet, embora não só.

A autonomia é o que podemos e devemos alcançar, caso queiramos ostentar a condição de seres racionais. A autonomia é uma racionalidade que permite, na expressão de Viktor Frankl, “espíritos independentes” capazes de fugir das perspectivas “guruficantes” e/ou alienantes.

Por fim, não menos importante, uma pergunta para encerrar: é você, de modo consciente, quem determina a lei (regra, opinião, ideia) à qual vai se submeter?

 

O autor, colaborador desta Revista, é doutor em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professor no Centro Universitário – Católica de Santa Catarina (CATÓLICASC).

itamarluis@gmail.com

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