O PODER DA INVISIBILIDADE
“O exercício do poder revela o homem”.
Aristóteles
Diante do sinal vermelho, paro. Se encontro uma quantia em dinheiro perdida pelo colega, devolvo. Sou fiel ao meu companheiro(a). Falo a verdade. Sou honesto. Não colo nas provas. Devolvo o troco corretamente. Ajudo quem necessita. Respeito às leis. Agora imagine que tenhamos o poder da invisibilidade e a certeza da impunidade, isso afetaria o nosso modo de agir? Ou continuaríamos agindo do mesmo modo como sempre agimos?
Platão, na obra A República, narra o seguinte mito. Giges era um modesto pastor nas terras do rei da Lídia. Esse pastor era afamado pelo comportamento moral exemplar e imaculado. Um bastião da moralidade. Certa vez, após uma forte tempestade e um assustador terremoto, Giges viu a terra se abrindo em um lugar próximo onde ele pastoreava o rebanho. Ele acessou a fenda e viu um cavalo de bronze e no interior deste, o esqueleto de um homem com um anel de ouro em um dos dedos. Giges tomou o anel e saiu.
Mais tarde, durante o encontro mensal dos pastores, ele se deu conta de uma descoberta incrível. Ao virar o engaste do anel para a parte interna da mão, Giges percebeu que ficava invisível. Repetiu várias vezes o movimento para se certificar. Concluiu, então, que tinha em suas mãos o poder da invisibilidade. O que fizera com isso? Rapidamente encontrou um meio para ser escolhido como responsável para prestar contas dos rebanhos ao rei. Ao chegar ao palácio, cortejou e seduziu a rainha. Com a ajuda dela, assassinou o rei e se tornou monarca.
Não há diferença entre bons e maus
O mito de Giges é uma espécie de experimento mental que busca demonstrar que tanto uma pessoa justa ou comprometida com a moral e uma pessoa injusta ou imoral, ambas agiriam de maneira similar investidas com o poder do anel. Ou melhor, na posse do poder da invisibilidade, desapareceria a diferença entre justos e injustos ou entre bons e maus.
Platão defende que “em cada um de nós, mesmo naqueles que parecem mais comedidos
[e corretos], existem desejos terríveis”, isto é, em todo o ser humano há uma fera alojada no subterrâneo da alma. Nesse caso, o poder da invisibilidade e a certeza da impunidade dadas pelo anel, libertam a fera aprisionada e retiram a máscara usada na teatralização da vida moral, ou seja, deixam o homem nu, escancaram suas vergonhas escondidas e protegidas pelo véu da moralidade. Em palavras diretas, com o anel de Giges o ser humano passa a agir “como se fosse um deus entre os homens”.
No entanto, o que motivava Giges a agir corretamente antes da descoberta do anel? Parece que a motivação de Giges estava atrelada ao medo, à coação social ou até mesmo ao desejo de ser aceito e reconhecido socialmente. Por isso ele reproduzia exemplarmente os comportamentos desejados e esperados pelas pessoas. Enquanto a sociedade vigiava e fiscalizava, o comportamento era reproduzido dentro das expectativas. Ou ainda, quanto mais exigido, cobrado e monitorado, mais ajustado e correto era o comportamento de Giges e, provavelmente, o de todos nós, seus irmãos.
O que você faz com o seu anel de Giges?
O filósofo francês, Jean-Jacques Rousseau, escreve: “acredito que seria melhor jogar fora meu anel mágico antes que ele me fizesse cometer alguma tolice”. Talvez seja uma boa ideia. Mas, penso que Rousseau ficou detido muito na fantasia do mito e pouco na realidade. Nós não podemos em hipótese alguma destruí-lo ou eliminá-lo. Carregamos o anel conosco a todo o momento. Ele é indissociável da nossa condição humana. Em outras palavras, estamos cotidianamente carregando o anel de Giges em todas as situações nas quais os tentáculos da vigilância e da fiscalização não chegam sobre nós, isto é, quando o olho do outro não pousa sobre nossas ações ou quando a câmera não registra o que estamos fazendo.
Aqui temos a passagem do experimento mental para a experimentação real. O mito não é ficção ou delírio, mas uma narrativa embrulhada de realidade. O que nos autorizamos a fazer quando não estamos numa situação de Big Brother, revela o quão próximo estamos ou não do protagonista do mito. Giges continua reivindicando que somos todos irmãos. Feitos da mesma matéria e sujeitos às mesmas escolhas e ações.
Hoje, talvez, pelo excesso de controle e monitoramento que instituímos na sociedade, parece que estamos dando razão a Giges. A sociedade que mais vigia e fiscaliza é a que mais tem chance de fazer a “moralidade prevalecer”. A ausência de mecanismos de controle indica caos moral. Vigiar para poder ter o comportamento moral esperado, esta parece ser a mensagem do experimento mental e real de Platão.
E você, o que pensa? Como age?
Itamar Luís Gelain
O autor, colaborador desta Revista, é doutor em Filosofia pela
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professor no Centro
Universitário – Católica de Santa Catarina (CATÓLICASC).
itamarluis@gmail.com