Retomando
Por aqui o ano só começa oficialmente depois da temporada de Verão. E claro, depois que passa o carnaval! Tudo o que é feito antes, parece não ser feito a plenos pulmões, como se a engrenagem funcionasse com metade de suas “máquinas” trabalhando, como se nada fosse levado muito a sério, como se tudo fosse só um ensaio em que se esquentam os tamborins. Mas, agora a capital vai se encher de carros novamente, a maior parte da população já voltou do litoral e os problemas urbanos vão voltar a bater nas nossas portas. É um fenômeno isso! Mas também é sintomático, porque nos define, porque explica o funcionamento não só cultural, mas também social do nosso Rio Grande do Sul. Detalhe: para alguns, a temporada de praia só acaba mesmo depois do domingo de Páscoa. E há quem diga que é exatamente em março que a praia fica divina!
Para um escritor, muitas dessas “paradas” não obedecem ao calendário da maioria. Mesmo na praia, mesmo no verão, mesmo na alta temporada, eu continuei trabalhando, escrevendo textos novos, publicando diariamente as minhas pequenas crônicas de areia e sal, ilustrando um livro que vai sair em breve e preparando as aulas dos cursos que vou ministrar ao longo do semestre. Nesse meio tempo ainda fui dar uma disciplina numa Pós-Graduação, no Rio de Janeiro e já estou de volta para agarrar a minha cuia de chimarrão (adquiri o hábito de tomar chimarrão o dia inteiro enquanto trabalho em casa) e me aprumar.
É certo que o volume de trabalho fica mesmo mais intenso a partir de março. Tenho a sensação de que finalmente o navio chegou ao porto e que vamos desembarcar para enfim nos incorporarmos à vida do lugar. A âncora vai ser lançada, as velas vão sendo recolhidas, as malas já estão prontas, a tripulação se coloca enfileirada para saudar os que estiveram com eles durante esse bom período, os viajantes agradecidos sorriem, trocam abraços, passam a mão em seus pertences e prometem voltar. Todos em movimento. Uma ancoragem feliz.
Renovação é a palavra de ordem! Em especial, são as forças que se renovam. Depois desse tempo de lazer e ócio (pra mim, sempre criativo!) a disposição é outra. Aliás, a disponibilidade é outra. Estamos mais entusiasmados para recomeçarmos as nossas tarefas. Eu sempre estou!
E já que venho singrando os mares do sul e atento às sinalizações dos faróis, recomendo para esse mês a leitura do livro “Navio negreiro no mar do branco do olho”, de Clóvis Levi, com ilustrações de Vanessa Rosa, publicado pela editora Viajante do Tempo. O livro é uma peça de teatro e nada melhor do que uma dramatização para começar o ano letivo. Aliás, precisamos nos acostumar a ler dramaturgia e a propor para nossos leitores (e alunos também) jogos dramáticos a partir de bons livros do gênero. Principalmente porque o mercado editorial nos últimos anos, já tem feito livros de dramaturgia com o mesmo conceito dos livros infantis: bem ilustrados, com projetos gráficos atraentes, capas bem cuidadas, papel de alta qualidade e tudo o mais que um livro dedicado às crianças merece.
Na peça o autor apresenta, de modo bem fantasioso e criativo um navio encantado, em que estão aprisionadas crianças escravas. Digo fantasioso, porque esse navio atravessa os tempos e é habitado por uma série de fantasmas, que são também a tripulação do navio. A embarcação é comandada pelos vilões Doutor Barão (o dono da caravela) e Alcatraz Avalancha, um pirata-feitor, encarregado de colocar para trabalhar, explorar e castigar as crianças. A obra evidentemente é uma denúncia, mas é também um lembrete para não esquecermos as agruras, violências e crueldades da escravidão e as desumanidades dos navios negreiros. A situação e o tema são tristes, claro, mas o autor consegue contar a história com humor (e com respeito, sem dúvida), brincando com a existência de uma cadela invisível, um personagem de duas cabeças e até do Fantasma da Ópera. Arco-Íris é Talita são as heroínas da história. A primeira é uma referência à nossa tão conhecida escrava Anastácia, que na história escolhe ser fantasma-criança, para enfim viver os anos que roubaram dela com a escravidão. A segunda é salva, junto com sua cadelinha (que se chama Xinxa) de um naufrágio, pelo Navio Encantado. São elas que vão comandar todo o movimento de libertação das crianças escravas.
O livro tem ainda ilustrações trabalhadas em azul e preto, que ora apostam na força dos efeitos conseguidos com o nanquim e ora apostam numa linguagem que nos remete para a xilogravura e a serigrafia. O impacto é muito bom. O jogo de claro e escuro do azul e do preto com o fundo branco da página aguçam o olhar!
Ainda me encanta, na proposta de encenação do livro, os efeitos propostos pelo autor, as cenas engraçadíssimas com a cachorrinha invisível e a mistura de ator e boneco, que ele sugere para o homem de Duas -Cabeças. Ah, a brincadeira da paixão de uma das cabeças pela heroína Talita é também muito divertida.
Clóvis Levi foi meu professor na universidade, mas não é por isso que escolhi o seu livro. Seu currículo de professor, encenador, autor e crítico de teatro é fantástico. Suas propostas cênicas são maravilhosas e sua trajetória é recheada de prêmios, desde que escreveu (em coautoria com Tânia Pacheco) o já clássico da dramaturgia brasileira contemporânea
“Se chovesse, vocês estragavam todos”. O melhor é que ele nunca perdeu esse seu poder de denunciar magistralmente todo e qualquer
ato de autoritarismo, censura, preconceito e desmandos.
O texto é perfeito para o nosso momento histórico e político, mas fazer tudo isso acontecer no “mar do branco do olho” é também uma atitude de poeta! Viva a arte, a resistência e os artistas desse país!
Publicado na edição de março de 2020