Artigos › 12/03/2024

O esquecimento é uma morte absoluta

A morte é uma certeza que nasce no parto. Quando acontecerá é uma incógnita.

Ela age de maneira autoritária, pois, sem pedir licença, determina o “nunca mais”, como escrevia o poeta Edgar Poe.

Para quem parte, há a busca da confirmação daquilo que acreditava, para quem fica, resta a saudade, a resiliência e o lento processo de padecimento temporal.

Se você morresse, hoje, quem sentiria sua falta? Você seria lembrado por qual tipo de existência e de legado? Essas questões remetem à imortalidade, um sonho antigo da humanidade. Imortalizar-se consiste em tornar-se perene entre os humanos, isto é, em escapar da lógica da temporalidade e do esquecimento. Entretanto, como continuar vivendo, ainda que morto?

A sabedoria popular já dá pistas para responder essa questão. Frequentemente ouvimos as pessoas repetirem o famigerado jargão: “Plantar uma árvore, ter um filho e escrever um livro: três coisas que toda pessoa deve fazer durante a vida”. Realizar a tarefa recomendada parece ser a garantia da perpetuação e da continuidade, ou seja, o sinal da imortalidade como uma marca que revela a presença diante da ausência.

 

Vencer a morte na cama

Para Platão, o ser mortal deseja a imortalidade, isto é, continuar vivendo mesmo falecido. Uma das possibilidades de superar a morte é por meio do legado do sangue (ou talvez, o legado do afeto, para quem é mãe e pai socioafetivo), garantindo a perpetuação da espécie e da descendência.

Os filhos carregam algo de seus pais e depois transmitem isso a seus filhos e assim sucessivamente. Platão pensa que é possível participar da imortalidade por meio da geração, uma vez que deixa-se “um outro ser novo em lugar do velho”.

Imortalizar-se pelo sangue é a forma mais democrática possível. Porém, ela apenas permite a imortalidade da espécie. Nesse caso, não é possível preservar a identidade individual, ou seja, a história pessoal de cada sujeito. Em outras palavras, é o sangue que se perpetua e se imortaliza, não o indivíduo. Todavia, enquanto lembrança na memória dos filhos, bem  como de seus descendentes, os pais têm a chance de se imortalizar. Dessa forma, enquanto,  um filho (neto ou bisneto) tiver condições de fixar uma fotografia de seus pais (avós ou bisavós) em sua casa ou preservar uma memória; estes continuarão presentes nas páginas da história. A memória dos filhos é a casa da imortalidade dos pais.

 

A memória derrota a morte

Platão observa que, além da imortalidade através da filiação, também é possível imortalizar-se por meio de grandes feitos, ou seja, ações notáveis, heróicas e gloriosas. Essas ações seriam registradas nos livros e estes seriam uma espécie de antídoto contra o tempo e o esquecimento. Os grandes personagens da história parecem que são imortais, justamente, porque são lembrados ao longo das gerações. Essa forma de imortalizar-se parece mais consistente, embora, talvez, mais aristocrática, isto é, reservada a um grupo significativamente pequeno de privilegiados. Todavia, a “imortalidade negativa” é no mínimo repulsiva e desastrosa, uma vez que o indivíduo marca a história com ações e feitos maléficos, calamitosos e repugnantes, como é o caso de Nero, Calígula, Stalin, Hitler, entre outros tantos.

Ademais, não só se imortalizam os homens e as mulheres que produziram grandes feitos e ações, mas também aqueles que os registraram. Ou seja, quem registra imortaliza-se por meio da palavra, ao passo que os heróis e as pessoas notáveis são imortalizados pelas ações, sobrando aos anônimos a imortalidade como resistência da lembrança na memória dos seus amados. Nas palavras de Fábio de Melo: “O último grão de terra será colocado quando eu for apagado da memória do último que de mim se recordou”.

Enquanto existir memória, a morte vai sendo derrotada. Quando isso não for mais possível é porque a morte se tornou absoluta. O sepultamento no anonimato da história se concretiza, definitivamente, quando a última gota de memória se dilui no oceano do esquecimento.

 

Itamar Luís Gelain

O autor, colaborador desta Revista, é doutor em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professor no Centro Universitário – Católica de Santa Catarina (CATÓLICASC).

itamarluis@gmail.com

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